MAKUNAIMÃ – O mito através do tempo (organizado por Jaider Esbell)
Há 7 anos venho trabalhando com a obra Macunaíma
de Mário de Andrade junto aos meus alunos do Ensino Médio. E através do tempo,
temos questionado as representações e estereótipos problemáticos da versão do
livro para o cinema de Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma, herói da nossa
gente.
Eu pensei diversas vezes em não trabalhar
mais com esse livro... O racismo, o machismo e outras violências causavam
repugnância aos alunos. Mas, o livro é obrigatório no currículo e desde o
início eu trouxe o filme junto nessa aula.
Eu também pensava que não havia maneira
melhor de mostrar o conceito de Antropofagia aos alunos, nas cenas em que
Macunaíma se metamorfoseia em outras cores e formas; quando “come” as mulheres literalmente,
mordendo e arrancando pedaços delas e do Curupira; na casa do Piaimã, a coleção
dos corpos humanos empalhados, enfim, o filme é uma comédia e algumas cenas são
autoexplicativas.
Eu sentia que esse filme era necessário para
a aprendizagem, pelo conhecimento do cinema experimental e pela estética
tropicalista que já anunciaria o que iríamos estudar mais a frente.
Eu sinto-penso que os alunos mereciam ter
acesso a essa obra de arte do cinema brasileiro, com a atuação brilhante de Grande
Otelo, Paulo José, Dina Sfat e tantos outros atores pouco valorizados como o
nosso Milton Gonçalves que nos deixou esse ano. E, sempre deu certo essa sessão
de cinema, os risos e gargalhadas sempre estiveram presentes.
Mas, o incômodo permanecia comigo...
Semestre passado, tive a oportunidade de
trabalhar com Macunaíma na Pós-graduação. No seminário sobre o livro, escolhi trabalhar com o filme.
Trouxe toda as problematizações e soluções que o filme causava em minhas aulas,
e conclui que ele cumpre, sim, o seu papel, a sua função social da arte:
discutir a identidade brasileira conclamada pelos modernistas e ficcionalizada
por Mário de Andrade.
Eu sinto-penso que nada é por acaso, e
sentipensar é estar atenta às coincidências e sincronicidades que acontecem em
nossas vidas. Fevereiro de 2022, 100 anos da Semana de Arte Moderna. Iniciamos
o semestre com essa discussão, sobre a Modernidade na Literatura. E, ao
analisar o filme pela milionésima vez, observei que a representação indígena
estava ausente na obra e no lugar dela, tínhamos atores brancos usando perucas
lisas e uma série de preconceitos sobre a cultura indígena.
Foi então que aconteceu a revelação: depois
de eu apresentar o livro, meu colega Fernando apresentou a peça de teatro Makunaimã,
o mito através do tempo. Ali, “caíram todos os butiás do bolso” ...Ali,
estavam todos os questionamentos e algumas respostas às minhas dúvidas e
incomodações. Eu não estava mais sozinha com o meu sentipensar.
Agora, estou de frente a esse livro e dentro
dele existem outros livros, outras narrativas, outras vozes, vozes que foram
silenciadas, povos que foram apagados, visões que não puderam ser
compartilhadas. Agora, parece que tudo faz sentido, e até o antropólogo alemão Theodor
Koch-Grünberg foi fundamental para nosso sentipensar.
SENTIPENSAR
MAKUNAIMÃ
Muda-se um acento, muda-se uma vogal, troca-se
uma consoante e já não estamos mais no mesmo lugar. Essa é outra obra, mesmo
tendo Macunaíma, o herói sem nenhum caráter como referência, aqui nós
temos “o mito através do tempo”, Makunaimã. O mito original foi ouvido e
transcrito em 1920, por Theodor Koch-Grünberg da voz de Akuli Taurepang, do
povo Taurepang.
Aqui, já temos a pessoa mais importante da
obra, que nunca foi mencionada, o homem indígena, Akuli Taurepang. E para essa
possibilidade ocorrer, criou-se um evento comemorativo em alusão ao aniversário
de 90 anos da obra, onde vários convidados reuniram-se para discutir o mito
através do tempo.
A nota da edição é muito importante para o
estudo da Literatura Oral e do conceito de performance, porque esclarece como
essas narrativas orais foram transmitidas de geração em geração até serem
transcritas por alguém. No caso, Mário de Andrade também modificou a
transcrição de Grünberg e acrescentou outros mitos no que ele chamou de
rapsódia.
Vou citar aqui a nota da dramaturga
Deborah Goldemberg:
O conceito de autoria para este
livro é aquele que, de acordo com Paul Zumthor em A letra e a voz
(Companhia das Letras, 1993), predominou na Idade Média, quando as histórias
eram narradas por diversos contadores na tradição oral, e eventualmente, num
esforço coletivo feito em oficina de copistas, uma versão dessa história era
transcrita e escrita para ingressar o universo literário. Todas as histórias e
ideias contidas nesse livro foram contadas ao longo do evento Makunaimã: o mito
através do tempo, ocorrido nas quatro casas da organização social POIESIS –
Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura em agosto de 2018. A
dramaturgia foi escrita e, posteriormente, todos puderam ler o texto e fazer
sugestões. Os direitos autorais do livro são dedicados aos narradores indígenas
taurepang, macuxi e wapichana.
Os direitos autorais do livro são dos povos
Taurepang, Macuxi e Wapichana porque Makunaimã é um mito originário em comum
para essas etnias. O livro é uma peça de teatro, mas também é classificado como
um livro de crônicas, organizado por Jaider Esbell, artista indígena macuxi que
atua na peça e faz as ilustrações do livro, e se apresenta como neto de
Makunaimî, outra grafia, outra cosmovisão.
O prefácio é do escritor Cristino Wapichana,
indígena do povo wapichana que inicia dizendo: “...Makunaíma ou Makunaimã, a
divindade indígena do tempo imemorial, habita o Monte Roraima, no extremo norte
do Brasil, e faz parte do sagrado de alguns povos indígenas que vivem sob o seu
cuidado e olhar de Menino Deus”. No meu próprio sentipensar, tento encaixar o
“mito através do tempo” num tempo imemorial... é impossível! Macunaíma vive e
está entre nós.
Continua Cristino:
Makunaimã, o mito através do tempo, a peça de teatro, traz as vozes
indígenas pemom, taurepang, wapichana e macuxi, povos que são herdeiros
legítimos de Makunaimã, a reclamar dentro da casa de Mário de Andrade o
Macunaíma estereotipado, que mistura histórias e culturas indígenas diferentes
para compreender a formação do povo brasileiro a partir do nosso sagrado.
“A partir do nosso sagrado”. Para entender o
segundo ato da peça, é preciso sentipensar o sagrado indígena. Entre as narrações
dos mitos e as imagens de Jaider Esbell, somos convidados a sentipensar
Makunaimã, não com nosso racional kantiano, ou nosso sentir separado da mente,
sentipensar conjuntamente, coletivamente, escutando o coração da terra que
pulsa nesses territórios sagrados, que também é nossa casa, nossa Mãe Terra.
No Ato 1 – “Visitante”, estamos na casa de
Mário de Andrade, uma casa-museu na Rua Lopes, 2018, São Paulo. E entre tantos
personagens, temos a presença de Akuli pa, indígena taurepang e Akuli mumu, pai
de Akuli pa Taurepang, descendentes de Avelino Taurepang, que viajaram
especialmente para o evento.
Na mesa de debates estão: Pedro,
antropólogo, Ariel, filósofo poeta e Laerte, escritor indígena wapichana. É de
Ariel, a fala contundente e surpreendente sobre o fato de Mário ser preto e
gay, discussão que o Movimento Negro reivindica há décadas: a autoria negra de
alguém que vai reproduzir em sua escrita os discursos de miscigenação e
democracia racial. O texto de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, é de
1928, primeira geração Modernista que teve a ausência de artistas negros em sua
revolução nas Artes Visuais e em seu Manifesto Antropófago.
Reproduzo aqui a fala de Ariel:
Tem uma função em reconhecermos que
Mário era preto e gay. Porque ele varreu boa parte da presunção acadêmica que
havia na literatura. A poesia que precede tudo isso e a poesia que há nisso se
completam. O que ele fez em Macunaíma foi criar um mito – um trans-mito -, mas
para além disso ele transmitiu o ser negro. E transmitiu o ser gay como
poderosas subjetividades e potências que até hoje não reconhecemos.
Eu entendo que transpor essas identidades é
uma potência que Mário produziu, apesar da sociedade racista e homofóbica da
época. Mas, ao meu ver, seria importante assumir essas identidades em meio a um
debate sobre identidades na Semana de Arte Moderna, afinal, o Brasil é o país
que mais assassina pessoas negras e LGBTI desde sempre. Hoje, Ariel devolve
essa subjetividade à Mário que foi invisível e incolor em 1928.
E para minha surpresa e alegria, na
descrição do Ato 1, o filme aparece na peça: “Nessa hora, o pessoal do evento
está reunido, assistindo o filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade,
já na cena final, quando Macunaíma e depois o Piaimã Venceslau Pietro Pietra se
balançam sobre a piscina. A sala está escura para a exibição do filme”.
Então, a fala de Akuli pa é esclarecedora:
“Ah, Makunaimã não vai morrer. É Piaimã que morre. Só que não no tanque em que
o Piaimã joga as crianças. Ele joga do outro lado da serra e a Velha Piaimã
fica lá embaixo e bate com o cacete neles. Quando o Makunaimã jogou o Piaimã,
ela achava que eram as crianças. E era o próprio marido, Makunaimã que o jogou,
a velha viu e foi cacetar, daí disse: “Uhhh, achei que era a caça e era o
marido”. Daí Piaimã morre.”
Aqui temos uma parte do mito que depois vai
aparecer no Ato 2 – “Mito”, como é narrada em Macunaíma de Mário de
Andrade pela voz do autor Jefferson. É a metaliteratura acontecendo, dentro da
peça: temos o mito original, a rapsódia de Mário de Andrade e o filme de
Joaquim Pedro de Andrade. Uma mistura bem antropofágica! Talvez, Macunaíma seja
isso, antropófago, alguém que provoque esses “trans-mitos”. E o texto sugere
que na parte final do Ato 2: “Aqui pode se editar trechos do filme, para se
auxiliar na visualização do texto longo”.
O “fantasma” de Mário de Andrade, que antes
apenas assistia a conversa e refletia, decide aparecer e se apresentar aos
presentes. Ele começa a questionar o que foi dito sobre ele e sua primeira
surpresa, depois de 60 anos morto, é saber da existência de escritores
indígenas, como Laerte que critica o fato de Mário não ter ido direto a fonte
oral dos indígenas, assim podendo ter escrito outra narrativa.
Chega a vez de Jaider Esbell se apresentar e
exigir que todos respeitem os mais velhos, no caso, o Akuli pa, filho de Avelino
Taurepang. Ele diz: “..., Mas eu sou apenas artista, dispenso o plástico, que
está destruindo o nosso meio ambiente. Não sou muito chegado nessa palavra”.
Aqui, Jaider nos traz a sua atuação cosmopolítica, ressignificando conceitos e
espaços que a Arte Indígena vem ocupando.
Ariel, para mim, é um personagem super
instigante. Ele faz comentários críticos e inteligentes sobre nosso mundo
contemporâneo, mas na peça, ninguém ouve, ele escreve cartas ou bilhetes que só
o público vê: Exemplo: “Exceto pelo “desmonte do Monte”, o desmonte do Estado e
a perpetuação das velhas formas de privilegiar os privilegiados, sim é a mesma
coisa”. Comentário sobre o que seria esse evento público.
O velho Akuli pa se apresenta para Mário,
explicando que é Makunaimã, o nome correto, assim como Roraimã e Piaimã, “mã” significa
grande. E Mário reitera: o grande mal! A importância das origens das palavras e
seus significados é resgatada pelo sábio indígena.
A curadora do evento, Deborah, apresenta
Ariel para Mário, como um filósofo negro e da favela de Santos, “filósofo-poeta”.
Veio para discutir, porque Macunaíma é preto no nosso evento”. E aqui temos,
para mim, uma das falas mais bonitas da peça, uma fala sentipensar:
Porque precisamos falar de amor e
de alteridade, Mário. Na verdade, para além da ideia de você ser gay, eu
prefiro a ideia de que você praticava uma forma transcendente de erotismo em
sua vida, e que quando falava em amor, esse conhecimento vinha da prática de
uma liberdade de ser hoje em dia que é cada vez mais rara. De qualquer modo, o
amor sempre será livre. O amor não tem sexo.
E Ariel continua seu
sentipensar: “Sobre ser negro, porque é imprescindível falar de nossa
anterioridade, contra a lógica do embranquecimento. Eu vejo a sua foto ali na
parede e você parece um branco aristocrata! Fizeram a mesma coisa com Machado
de Assis, um negro que foi violentamente embranquecido”.
E a Antropofagia não ficaria de fora dessa
peça. Jaider começa a fazer uma live com o celular e Mário curioso, pede
a explicação sobre o que seria aquilo, para no fim concluir que: “Muito
antropofágico! Osvald teria adorado te ver me devorando dessa forma! Você é um
dos nossos, esteja certo”! A ReAntropofagia está presente, como diz Denilson
Baniwa. Agora é a vez dos indígenas, aliás, a Antropofagia volta ao seu lugar
de origem.
Seguindo a conversa, ao falar sobre redes
sociais, Mário diz uma frase que nos remete novamente à problemática do tempo:
“E isso de tempo real, jamais imaginei uma coisa dessas. O tempo é algo
naturalmente irreal”. O que nos leva a aceitar que a presença de um
“morto-vivo” nessa peça seria mais do que normal, assim como a atemporalidade
do mito de Makunaimã.
E Laerte, escritor indígena vem jogar um “balde
de água fria” de realidade em cima de Mário de Andrade, que ao saber que no
Brasil, tem mais celulares do que pessoas, acredita que a desigualdade social
tenha acabado: Laerte: “É relativo. Tem gente que tem celular e não tem onde
morar: que tem celular e que não sabe nem escrever uma mensagem direito, porque
continua semianalfabeta: que gasta tanto com o celular que não sobre para ir ao
dentista ou para levar as crianças ao médico”. Nessa peça, o Modernismo ainda é
falar sobre a realidade social brasileira, objetivo da turma de 1922, que não
se deu por completo. Talvez, faltasse o sentipensar indígena.
Assim como as mulheres artistas da Semana de
Arte Moderna tiveram pouco espaço e reconhecimento, aqui também senti falta de
mais protagonismo feminino. Tem um diálogo que parece que vai avançar, mas logo
é interrompido por outro homem...
Iara: e ainda há desigualdades em
relação às mulheres.
Ariel: no caso das mulheres negras,
pior ainda!
(...)
Iara: Sim, mas isso (direito ao
voto) não basta. Agora, temos outras pautas.
Curadora: Aliás, Mário, permita-me
dizer que as cenas de sexo entre Ci e Macunaíma eram um tanto violentas. Hoje
em dia não seriam bem recebidas. Constituem quase um estupro, não?
Nessa peça me senti contemplada quanto a
esse tema, incômodo para mim e para as alunas que assistiam o filme. Nessa
cena, elas perdiam todo o interesse pela narrativa, porque Macunaíma, além de
passar os manos pra trás, roubar comida, mulher e levar vantagem em tudo, é um
estuprador..., Mas, como mencionei, o assunto para nesse diálogo...
Antes de encerrar a rodada de apresentações,
a Curadora apresenta a historiadora Bete Wapichana, professora indígena:
“Mário, a Bete veio justamente para dar voz às mulheres indígenas no nosso
evento. Veio de Roraima, lar dos povos de Makunaimã, assim como o Akuli pa
Taurepang e o Jaider Macuxi”.
Mas Bete, a única mulher indígena, só vai
reaparecer no final do Ato 2- “Mito” para falar que “Makunaimã é um ser
espiritual. Deus Indígena”. Ela fala do mundo “cheio de feitiço e magia”, que
temos que reconhecer. Ela conta o Mito da Mãe D’água enquanto Jaider vai
pintando na tela. O Ato 2 é todo sentipensar! É preciso se entregar às
narrativas dos mitos, sem começo, meio e fim, e às lendas que os convidados
trazem para essa roda de vinho e charutos, sentires, pensares e reflexões sobre
o Brasil e os povos indígenas.
Makunaimã, o mito através do tempo, é
para mim uma obra que transcende o texto original e nos leva de volta para
casa, o mito original, lar de Makunaimã. É um texto que responde minhas
inquietações e provoca muitas outras. Aqui temos ferramentas para seguirmos desobedecendo
o que nos é imposto e levando sempre a sabedoria do coração para nossas
pesquisas, leituras e aulas. Se um dia, Macunaíma me seduziu, é porque nesse
caminho eu sentia meu coração bater mais forte!
Ana
Paula Freitas dos Santos
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