sexta-feira, 4 de agosto de 2023

LEITURAS OBRIGATÓRIAS 2024 - JORNAL DA UNIVERSIDADE (UFRGS)

DUAS ENTREVISTAS QUE CONCEDI AO JORNAL DA UNIVERSIDADE (2020/2023)

Especial Leituras Obrigatórias
Com o objetivo de ampliar as experiências de leitura, o JU produz, desde 2018, uma série de reportagens em que especialistas destacam aspectos e fazem análises interpretativas das obras indicadas pela Universidade. 
                                              Arte: Mitti Mendonça (instagram: @mao.negra)

Mitti Mendonça é artista visual independente. Em 2017, criou o selo Mão Negra Resiste com o intuito de fomentar diálogos e protagonizar poéticas negras no universo da arte. Sua pesquisa aborda territórios negros, memória, afeto e ancestralidade. Tem uma produção que perpassa as linguagens de bordado, colagem, gravura, desenho e arte sonora.

O descobrir-se a si mesma em Conceição Evaristo

Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Panda, Molenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém.

-Trecho do livro Ponciá Vicêncio 

É o rio que dá início à história de Ponciá Vicêncio – nome da obra, mas também da protagonista. É às margens da água que o livro de estreia de Conceição Evaristo nos apresenta Ponciá. Ainda criança e sonhadora, ela enxerga o Angorô – arco-íris, em língua bantu – e teme: viraria menino se atravessasse o rio por debaixo das sete cores no céu? Atravessa e logo percebe que o corpo continuava o mesmo. Nem o Angorô, tampouco o rio, haviam mudado quem Ponciá era e quem viria a ser. Publicado pela primeira vez em 2003, o romance, uma das novas Leituras Obrigatórias do Vestibular da UFRGS, convida o leitor a acompanhar o vir a ser de Ponciá Vicêncio e a navegar junto à protagonista por suas memórias e as de seus ancestrais. 

O livro narra, em um constante vai e vem no tempo, desde a infância até a fase adulta da vida de Ponciá. Filha de Maria e neta do Velho Vicêncio, a protagonista nascera sob a Lei do Ventre Livre. No entanto, já de início, se entende que ainda há a “terra dos brancos” e a “terra dos negros”. E, de forma inaugural e subversiva na história da literatura brasileira, estamos a olhar a partir da terra dos negros. A partir das (escre)vivências de uma mulher negra. 

Conceição Evaristo faz uma inversão de pontos de vista em Ponciá Vicêncio. “Ela não diz que a protagonista é negra, mas diz que os brancos existem. Inverte o lugar porque sempre é o negro que é uma invenção do branco. Em Ponciá, é a história do negro contada pelo negro. Evaristo subverte pelas palavras. Conta o que não foi contado na literatura brasileira”, aponta Ana Paula dos Santos, mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS. 

Partir e retornar

Um dos momentos mais importantes do livro e que marca a passagem da protagonista para a vida adulta é sua ida à cidade grande. Partindo do lugar onde nasceu, Ponciá pensou estar indo ao encontro de uma vida melhor, diferente da falsa abolição do campo. Encontrou, porém, uma cidade hostil. Chegou com os desejos que tinha desde menina e, com o tempo, os viu esvaziarem. Foi sentindo um permanente vazio.

Para Ana Paula, a cidade faz Ponciá parar de sonhar e a leva de volta ao passado e à família, à procura dos pedaços de si que ficaram para trás. A mestranda lembra a semelhança com a protagonista de Clarice Lispector em A Hora da Estrela

“Ponciá faz também o percurso de Macabéa. Elas saem do interior, vão para a cidade grande. Macabéa, como Ponciá, é ingênua, pura e sonhadora. Mas chega à cidade e encontra esse lugar que não é hospitaleiro. E para Ponciá será ainda pior, porque ela é uma mulher negra. Na sociedade já está determinado até onde a pessoa negra pode ir.”

Ana Paula dos Santos

Nesse encontrar-se na cidade, Elen Karla Sousa da Silva, doutoranda no PPG em Letras da UFRGS, destaca a importância de outros personagens, especialmente o avô. Apesar de não terem dividido o mesmo espaço e tempo – Ponciá era uma criança de colo quando ele faleceu –, os dois guardavam muitas semelhanças nos gestos, nas ações e até mesmo nos pensamentos. Essa incorporação do avô, aponta Elen, é a incorporação da própria ancestralidade.

“Ponciá herdou do avô esse sofrimento de uma condição de escravizado, por mais que ela não fosse. Herdou essa dor profunda, que começa no sobrenome. Vicêncio era o nome dos senhores de escravos, era um nome que não era deles.” A doutoranda sinaliza também que a personagem não buscava resgatar a própria identidade, porque, segundo ela, ninguém resgata uma identidade perdida.

“O que ela estava tentando era reconstruir a identidade de alguma forma. Ela não se reconhecia e ficava entre idas e vindas em busca de se reencontrar, de reescrever essa história.”

Elen Karla Sousa da Silva
Escreviver uma memória individual e coletiva

Ambas pesquisadoras acreditam que, apesar de Ponciá Vicêncio revelar uma série de ausências marcadas por um universo de racismo e sexismo, a obra é desenhada com ternura e afeto por Conceição Evaristo. A partir de um realismo poético, a autora estreia em Ponciá o método que a acompanhará em todas as obras seguintes: a escrevivência.  A autora leva às letras experiências da própria infância, de sua vivência enquanto mulher negra. Apesar de o livro não ser autobiográfico, como é Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, os dois se conectam ao trazerem à literatura histórias que apresentam mulheres negras em suas complexidades e integridades, sem desumanizá-las. 

“A escrevivência nasce e parte da mulher negra. Traduz a vivência em comum que essas mulheres compartilham – tanto as opressões de raça e gênero quanto as superações e resistências cotidianas que produzem. A gente cria uma resistência para se manter vivo e manter a memória para os nossos. A escrevivência que vemos em Ponciá Vicêncio também vai se referir a uma memória coletiva do povo africano em diáspora no Brasil. Uma diáspora forçada, sequestrada”, sintetiza Ana Paula. 





                                             Arte: Erika Nunes Fernandes 
Erika Nunes Fernandes é artista visual e estudante de Artes Visuais na UFRGS. Suas pinturas e esculturas partem do estudo da fauna e flora e usam tintas fluorescentes, tendo vida também no escuro.

A literatura orgulhosamente negra e caipira de Ruth Guimarães

“E Joca é esse trapo que anda aí. Virou andante. Um dia está aqui, outro dia não se sabe dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei. Até em Curiango a praga acertou de ricochete. Enquanto o pai foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu… Não pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d’água. Tem uma risada de passarinho nascido perto da cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva”

Trecho de Água Funda

“É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos.” É dessa forma que Antonio Candido resume Água Funda no prefácio escrito para a segunda edição da obra, publicada em 2003.

Essa prosa fiada, que dá ao leitor a sensação de estar escutando as personagens, é um dos aspectos mais aclamados do romance de Ruth Guimarães (1920-2014). Nascida e criada em Cachoeira Paulista, cidade localizada quase na divisa com Minas Gerais, Ruth traz a Água Funda um retrato do Brasil caipira sem cair em estereótipos ou idealizações. Usando seu lugar de fala como mulher negra e caipira, a autora se inspira na sua própria vida na roça.

Com linguagem marcada pela oralidade, o romance é repleto de descrições. “A gente vê o caipira, aquele que é ligado à terra, as descrições da natureza, a gente vê bem o sentimento dela [da Ruth] de amar esse lugar. E aí tu vai ver na biografia dela que ela não sai desse lugar, ela fica ali. Esse é o desejo dela: ver aquele céu, ver aqueles pássaros, ver aquela flora… E a gente chega até a sentir o cheiro do ar puro”, destaca a doutoranda em Letras pela UFRGS Ana dos Santos, que pesquisa literatura negra de autoria feminina.

A obra é escrita em um formato de conversa de um/a narrador/a com “um moço”. A doutoranda do departamento de Estudos Literários da USP Cecília Furquim defende que, na verdade, o/a narrador/a é uma mulher. Ela explica que, ao longo do romance há diversas pistas que mostram que esse/a narrador/a é alguém da comunidade e que, ao mesmo tempo que tem familiaridade com a linguagem caipira, também possui educação formal. “A gente poderia dizer que a narradora é um alterego da Ruth, porque ela tinha uma escolaridade, inclusive, excepcional para a época, para o fato de ser uma mulher negra”, aponta.

Ana concorda que o/a narrador/a é alguém pertencente à comunidade, mas tem dúvidas quanto ao gênero. “Pode ser uma narradora, mas o que me incomoda é que o posicionamento desse narrador é muito vago. Ele só diz ‘na escravidão era assim’. E eu não sei se a Ruth respeitaria tanto assim o poder, porque, para mim, ela era muito ousada para a época”, analisa. Afinal, Ruth era uma mulher negra, caipira e jovem – Água Funda foi publicado em 1946, quando ela tinha 26 anos.

Seja com narrador ou narradora, a composição do romance – fragmentada, uma espécie de “colcha de retalhos” – é a grande originalidade da obra. Cecília aponta que, como isso não era comum na época, esse aspecto não foi bem recebido pela crítica naquele momento. “A gente pode dizer que essa composição da obra – que na época do lançamento foi alvo de críticas – tem a ver com o fato de a Ruth ter juntado ‘causos’ que ela escutava, vivenciava”, diz.

Em um depoimento concedido ao Museu Afro Brasil em 2007, Ruth comentou que essa composição se inspirava no povo brasileiro.

“Assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali”

Ruth Guimarães

A obra acontece em dois momentos temporais: a primeira parte do livro se passa cerca de 15 anos antes da abolição da escravatura, na fazenda Olhos D’Água; a segunda parte, entre os anos 1930 e 1940, na cidade de Pedra Branca. Apesar desse salto no tempo, o que se percebe no romance é que aspectos como a exploração do caipira e a desigualdade permanecem intocados, fazendo uma espécie de desvelamento da estrutura colonial que permaneceu no Brasil.

“Mudou a fase, mudou o século, mudou de Monarquia para República, mas na água funda do Brasil se manteve a estrutura colonial”

Ana dos Santos

Nesse sentido, em um dos trechos do livro é inevitável lembrar de notícias recentes sobre casos de trabalho análogo à escravidão na Serra e na Fronteira Oeste gaúchas. Em Água Funda, um forasteiro sem nome chega a Pedra Branca para recrutar homens para trabalhar na abertura de estradas no sertão, prometendo o pagamento de trinta mil réis (um valor alto) por dia.

“– E livre de despesas. Quer dizer, não é bem livre de despesas. É assim: todos os gastos correm por conta dos engenheiros. É uma companhia grande. Depois o empregado paga aos poucos. Quando a gente entra, assina um contrato…

– Assim é bom. Mas a Companhia tem de tudo?

– Tem. Armazém, loja e farmácia, além de alojamento para o pessoal.

– Tudo isso e os trinta por dia correndo…”

Um dos personagens, Mané Pão Doce, resolve aceitar a oferta. Volta, tempos depois, contando que precisou fugir do lugar, porque a situação era diferente do prometido: além de trabalhar pesado, sem descanso e ouvindo ofensas do patrão, os empregados eram pagos em vales, aceitos apenas no armazém da Companhia – que cobrava muito caro pelos produtos. Ao pedir as contas, o empregado descobre que deve ao patrão pela viagem, pela esteira em que dormia, pelo alojamento, pela lavagem de roupa, além das compras no armazém – e só pode ir embora quando saldar a dívida. “Contando com tudo, ia meu ordenado e eu ainda ficava devendo uns dois meses de serviço”, reflete a personagem.

O/a narrador/a de Água Funda credita os tristes destinos dos personagens a uma praga lançada pela escravizada Joana. Para Ana, a praga é uma metáfora para os 300 anos de escravidão. “Esse romance está fazendo uma crítica à escravidão e ao pós-abolição, que manteve as coisas como estão e, se elas estão dando errado, é porque não se resolveu isso lá atrás. É o fantasma da escravidão”, conclui a pesquisadora.

               

entrevistas copiadas do site Jornal da Universidade

sábado, 22 de abril de 2023


 

MAKUNAIMÃ – O mito através do tempo (organizado por Jaider Esbell)

 

   Há 7 anos venho trabalhando com a obra Macunaíma de Mário de Andrade junto aos meus alunos do Ensino Médio. E através do tempo, temos questionado as representações e estereótipos problemáticos da versão do livro para o cinema de Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma, herói da nossa gente.

   Eu pensei diversas vezes em não trabalhar mais com esse livro... O racismo, o machismo e outras violências causavam repugnância aos alunos. Mas, o livro é obrigatório no currículo e desde o início eu trouxe o filme junto nessa aula.

   Eu também pensava que não havia maneira melhor de mostrar o conceito de Antropofagia aos alunos, nas cenas em que Macunaíma se metamorfoseia em outras cores e formas; quando “come” as mulheres literalmente, mordendo e arrancando pedaços delas e do Curupira; na casa do Piaimã, a coleção dos corpos humanos empalhados, enfim, o filme é uma comédia e algumas cenas são autoexplicativas.

   Eu sentia que esse filme era necessário para a aprendizagem, pelo conhecimento do cinema experimental e pela estética tropicalista que já anunciaria o que iríamos estudar mais a frente.

   Eu sinto-penso que os alunos mereciam ter acesso a essa obra de arte do cinema brasileiro, com a atuação brilhante de Grande Otelo, Paulo José, Dina Sfat e tantos outros atores pouco valorizados como o nosso Milton Gonçalves que nos deixou esse ano. E, sempre deu certo essa sessão de cinema, os risos e gargalhadas sempre estiveram presentes.

   Mas, o incômodo permanecia comigo...

   Semestre passado, tive a oportunidade de trabalhar com Macunaíma na Pós-graduação. No seminário sobre o livro, escolhi trabalhar com o filme. Trouxe toda as problematizações e soluções que o filme causava em minhas aulas, e conclui que ele cumpre, sim, o seu papel, a sua função social da arte: discutir a identidade brasileira conclamada pelos modernistas e ficcionalizada por Mário de Andrade.

   Eu sinto-penso que nada é por acaso, e sentipensar é estar atenta às coincidências e sincronicidades que acontecem em nossas vidas. Fevereiro de 2022, 100 anos da Semana de Arte Moderna. Iniciamos o semestre com essa discussão, sobre a Modernidade na Literatura. E, ao analisar o filme pela milionésima vez, observei que a representação indígena estava ausente na obra e no lugar dela, tínhamos atores brancos usando perucas lisas e uma série de preconceitos sobre a cultura indígena.

   Foi então que aconteceu a revelação: depois de eu apresentar o livro, meu colega Fernando apresentou a peça de teatro Makunaimã, o mito através do tempo. Ali, “caíram todos os butiás do bolso” ...Ali, estavam todos os questionamentos e algumas respostas às minhas dúvidas e incomodações. Eu não estava mais sozinha com o meu sentipensar.

   Agora, estou de frente a esse livro e dentro dele existem outros livros, outras narrativas, outras vozes, vozes que foram silenciadas, povos que foram apagados, visões que não puderam ser compartilhadas. Agora, parece que tudo faz sentido, e até o antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg foi fundamental para nosso sentipensar.

 

SENTIPENSAR MAKUNAIMÃ

 

 

   Muda-se um acento, muda-se uma vogal, troca-se uma consoante e já não estamos mais no mesmo lugar. Essa é outra obra, mesmo tendo Macunaíma, o herói sem nenhum caráter como referência, aqui nós temos “o mito através do tempo”, Makunaimã. O mito original foi ouvido e transcrito em 1920, por Theodor Koch-Grünberg da voz de Akuli Taurepang, do povo Taurepang.

   Aqui, já temos a pessoa mais importante da obra, que nunca foi mencionada, o homem indígena, Akuli Taurepang. E para essa possibilidade ocorrer, criou-se um evento comemorativo em alusão ao aniversário de 90 anos da obra, onde vários convidados reuniram-se para discutir o mito através do tempo.

   A nota da edição é muito importante para o estudo da Literatura Oral e do conceito de performance, porque esclarece como essas narrativas orais foram transmitidas de geração em geração até serem transcritas por alguém. No caso, Mário de Andrade também modificou a transcrição de Grünberg e acrescentou outros mitos no que ele chamou de rapsódia.

     Vou citar aqui a nota da dramaturga Deborah Goldemberg:

O conceito de autoria para este livro é aquele que, de acordo com Paul Zumthor em A letra e a voz (Companhia das Letras, 1993), predominou na Idade Média, quando as histórias eram narradas por diversos contadores na tradição oral, e eventualmente, num esforço coletivo feito em oficina de copistas, uma versão dessa história era transcrita e escrita para ingressar o universo literário. Todas as histórias e ideias contidas nesse livro foram contadas ao longo do evento Makunaimã: o mito através do tempo, ocorrido nas quatro casas da organização social POIESIS – Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura em agosto de 2018. A dramaturgia foi escrita e, posteriormente, todos puderam ler o texto e fazer sugestões. Os direitos autorais do livro são dedicados aos narradores indígenas taurepang, macuxi e wapichana.

 

   Os direitos autorais do livro são dos povos Taurepang, Macuxi e Wapichana porque Makunaimã é um mito originário em comum para essas etnias. O livro é uma peça de teatro, mas também é classificado como um livro de crônicas, organizado por Jaider Esbell, artista indígena macuxi que atua na peça e faz as ilustrações do livro, e se apresenta como neto de Makunaimî, outra grafia, outra cosmovisão.

   O prefácio é do escritor Cristino Wapichana, indígena do povo wapichana que inicia dizendo: “...Makunaíma ou Makunaimã, a divindade indígena do tempo imemorial, habita o Monte Roraima, no extremo norte do Brasil, e faz parte do sagrado de alguns povos indígenas que vivem sob o seu cuidado e olhar de Menino Deus”. No meu próprio sentipensar, tento encaixar o “mito através do tempo” num tempo imemorial... é impossível! Macunaíma vive e está entre nós.

   Continua Cristino:

Makunaimã, o mito através do tempo, a peça de teatro, traz as vozes indígenas pemom, taurepang, wapichana e macuxi, povos que são herdeiros legítimos de Makunaimã, a reclamar dentro da casa de Mário de Andrade o Macunaíma estereotipado, que mistura histórias e culturas indígenas diferentes para compreender a formação do povo brasileiro a partir do nosso sagrado.

    

   “A partir do nosso sagrado”. Para entender o segundo ato da peça, é preciso sentipensar o sagrado indígena. Entre as narrações dos mitos e as imagens de Jaider Esbell, somos convidados a sentipensar Makunaimã, não com nosso racional kantiano, ou nosso sentir separado da mente, sentipensar conjuntamente, coletivamente, escutando o coração da terra que pulsa nesses territórios sagrados, que também é nossa casa, nossa Mãe Terra.

   No Ato 1 – “Visitante”, estamos na casa de Mário de Andrade, uma casa-museu na Rua Lopes, 2018, São Paulo. E entre tantos personagens, temos a presença de Akuli pa, indígena taurepang e Akuli mumu, pai de Akuli pa Taurepang, descendentes de Avelino Taurepang, que viajaram especialmente para o evento.

   Na mesa de debates estão: Pedro, antropólogo, Ariel, filósofo poeta e Laerte, escritor indígena wapichana. É de Ariel, a fala contundente e surpreendente sobre o fato de Mário ser preto e gay, discussão que o Movimento Negro reivindica há décadas: a autoria negra de alguém que vai reproduzir em sua escrita os discursos de miscigenação e democracia racial. O texto de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, é de 1928, primeira geração Modernista que teve a ausência de artistas negros em sua revolução nas Artes Visuais e em seu Manifesto Antropófago.

   Reproduzo aqui a fala de Ariel:

Tem uma função em reconhecermos que Mário era preto e gay. Porque ele varreu boa parte da presunção acadêmica que havia na literatura. A poesia que precede tudo isso e a poesia que há nisso se completam. O que ele fez em Macunaíma foi criar um mito – um trans-mito -, mas para além disso ele transmitiu o ser negro. E transmitiu o ser gay como poderosas subjetividades e potências que até hoje não reconhecemos.

  

   Eu entendo que transpor essas identidades é uma potência que Mário produziu, apesar da sociedade racista e homofóbica da época. Mas, ao meu ver, seria importante assumir essas identidades em meio a um debate sobre identidades na Semana de Arte Moderna, afinal, o Brasil é o país que mais assassina pessoas negras e LGBTI desde sempre. Hoje, Ariel devolve essa subjetividade à Mário que foi invisível e incolor em 1928.

   E para minha surpresa e alegria, na descrição do Ato 1, o filme aparece na peça: “Nessa hora, o pessoal do evento está reunido, assistindo o filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, já na cena final, quando Macunaíma e depois o Piaimã Venceslau Pietro Pietra se balançam sobre a piscina. A sala está escura para a exibição do filme”.

   Então, a fala de Akuli pa é esclarecedora: “Ah, Makunaimã não vai morrer. É Piaimã que morre. Só que não no tanque em que o Piaimã joga as crianças. Ele joga do outro lado da serra e a Velha Piaimã fica lá embaixo e bate com o cacete neles. Quando o Makunaimã jogou o Piaimã, ela achava que eram as crianças. E era o próprio marido, Makunaimã que o jogou, a velha viu e foi cacetar, daí disse: “Uhhh, achei que era a caça e era o marido”. Daí Piaimã morre.”

   Aqui temos uma parte do mito que depois vai aparecer no Ato 2 – “Mito”, como é narrada em Macunaíma de Mário de Andrade pela voz do autor Jefferson. É a metaliteratura acontecendo, dentro da peça: temos o mito original, a rapsódia de Mário de Andrade e o filme de Joaquim Pedro de Andrade. Uma mistura bem antropofágica! Talvez, Macunaíma seja isso, antropófago, alguém que provoque esses “trans-mitos”. E o texto sugere que na parte final do Ato 2: “Aqui pode se editar trechos do filme, para se auxiliar na visualização do texto longo”.

   O “fantasma” de Mário de Andrade, que antes apenas assistia a conversa e refletia, decide aparecer e se apresentar aos presentes. Ele começa a questionar o que foi dito sobre ele e sua primeira surpresa, depois de 60 anos morto, é saber da existência de escritores indígenas, como Laerte que critica o fato de Mário não ter ido direto a fonte oral dos indígenas, assim podendo ter escrito outra narrativa.

   Chega a vez de Jaider Esbell se apresentar e exigir que todos respeitem os mais velhos, no caso, o Akuli pa, filho de Avelino Taurepang. Ele diz: “..., Mas eu sou apenas artista, dispenso o plástico, que está destruindo o nosso meio ambiente. Não sou muito chegado nessa palavra”. Aqui, Jaider nos traz a sua atuação cosmopolítica, ressignificando conceitos e espaços que a Arte Indígena vem ocupando.

   Ariel, para mim, é um personagem super instigante. Ele faz comentários críticos e inteligentes sobre nosso mundo contemporâneo, mas na peça, ninguém ouve, ele escreve cartas ou bilhetes que só o público vê: Exemplo: “Exceto pelo “desmonte do Monte”, o desmonte do Estado e a perpetuação das velhas formas de privilegiar os privilegiados, sim é a mesma coisa”. Comentário sobre o que seria esse evento público.

   O velho Akuli pa se apresenta para Mário, explicando que é Makunaimã, o nome correto, assim como Roraimã e Piaimã, “mã” significa grande. E Mário reitera: o grande mal! A importância das origens das palavras e seus significados é resgatada pelo sábio indígena.

   A curadora do evento, Deborah, apresenta Ariel para Mário, como um filósofo negro e da favela de Santos, “filósofo-poeta”. Veio para discutir, porque Macunaíma é preto no nosso evento”. E aqui temos, para mim, uma das falas mais bonitas da peça, uma fala sentipensar:

Porque precisamos falar de amor e de alteridade, Mário. Na verdade, para além da ideia de você ser gay, eu prefiro a ideia de que você praticava uma forma transcendente de erotismo em sua vida, e que quando falava em amor, esse conhecimento vinha da prática de uma liberdade de ser hoje em dia que é cada vez mais rara. De qualquer modo, o amor sempre será livre. O amor não tem sexo.

 

   E Ariel continua seu sentipensar: “Sobre ser negro, porque é imprescindível falar de nossa anterioridade, contra a lógica do embranquecimento. Eu vejo a sua foto ali na parede e você parece um branco aristocrata! Fizeram a mesma coisa com Machado de Assis, um negro que foi violentamente embranquecido”.

   E a Antropofagia não ficaria de fora dessa peça. Jaider começa a fazer uma live com o celular e Mário curioso, pede a explicação sobre o que seria aquilo, para no fim concluir que: “Muito antropofágico! Osvald teria adorado te ver me devorando dessa forma! Você é um dos nossos, esteja certo”! A ReAntropofagia está presente, como diz Denilson Baniwa. Agora é a vez dos indígenas, aliás, a Antropofagia volta ao seu lugar de origem.

   Seguindo a conversa, ao falar sobre redes sociais, Mário diz uma frase que nos remete novamente à problemática do tempo: “E isso de tempo real, jamais imaginei uma coisa dessas. O tempo é algo naturalmente irreal”. O que nos leva a aceitar que a presença de um “morto-vivo” nessa peça seria mais do que normal, assim como a atemporalidade do mito de Makunaimã.

   E Laerte, escritor indígena vem jogar um “balde de água fria” de realidade em cima de Mário de Andrade, que ao saber que no Brasil, tem mais celulares do que pessoas, acredita que a desigualdade social tenha acabado: Laerte: “É relativo. Tem gente que tem celular e não tem onde morar: que tem celular e que não sabe nem escrever uma mensagem direito, porque continua semianalfabeta: que gasta tanto com o celular que não sobre para ir ao dentista ou para levar as crianças ao médico”. Nessa peça, o Modernismo ainda é falar sobre a realidade social brasileira, objetivo da turma de 1922, que não se deu por completo. Talvez, faltasse o sentipensar indígena.

   Assim como as mulheres artistas da Semana de Arte Moderna tiveram pouco espaço e reconhecimento, aqui também senti falta de mais protagonismo feminino. Tem um diálogo que parece que vai avançar, mas logo é interrompido por outro homem...

Iara: e ainda há desigualdades em relação às mulheres.

Ariel: no caso das mulheres negras, pior ainda!

(...)

Iara: Sim, mas isso (direito ao voto) não basta. Agora, temos outras pautas.

Curadora: Aliás, Mário, permita-me dizer que as cenas de sexo entre Ci e Macunaíma eram um tanto violentas. Hoje em dia não seriam bem recebidas. Constituem quase um estupro, não?

 

   Nessa peça me senti contemplada quanto a esse tema, incômodo para mim e para as alunas que assistiam o filme. Nessa cena, elas perdiam todo o interesse pela narrativa, porque Macunaíma, além de passar os manos pra trás, roubar comida, mulher e levar vantagem em tudo, é um estuprador..., Mas, como mencionei, o assunto para nesse diálogo...

   Antes de encerrar a rodada de apresentações, a Curadora apresenta a historiadora Bete Wapichana, professora indígena: “Mário, a Bete veio justamente para dar voz às mulheres indígenas no nosso evento. Veio de Roraima, lar dos povos de Makunaimã, assim como o Akuli pa Taurepang e o Jaider Macuxi”.

   Mas Bete, a única mulher indígena, só vai reaparecer no final do Ato 2- “Mito” para falar que “Makunaimã é um ser espiritual. Deus Indígena”. Ela fala do mundo “cheio de feitiço e magia”, que temos que reconhecer. Ela conta o Mito da Mãe D’água enquanto Jaider vai pintando na tela. O Ato 2 é todo sentipensar! É preciso se entregar às narrativas dos mitos, sem começo, meio e fim, e às lendas que os convidados trazem para essa roda de vinho e charutos, sentires, pensares e reflexões sobre o Brasil e os povos indígenas.

   Makunaimã, o mito através do tempo, é para mim uma obra que transcende o texto original e nos leva de volta para casa, o mito original, lar de Makunaimã. É um texto que responde minhas inquietações e provoca muitas outras. Aqui temos ferramentas para seguirmos desobedecendo o que nos é imposto e levando sempre a sabedoria do coração para nossas pesquisas, leituras e aulas. Se um dia, Macunaíma me seduziu, é porque nesse caminho eu sentia meu coração bater mais forte!

 

Ana Paula Freitas dos Santos

 

 

  

  

 

  

 

 

domingo, 9 de abril de 2023

 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL!


Participe do @forumsocialmundial2023 !
Painel: Sororidade na Literatura Brasileira
Dia 23/01/23, 15h, no YouTube do Canal Sororidade
@canal_sororidade
@solfigueiredo_oficial
@margareteprado6280
@ana.flordolacio
#literaturabrasileira
#sororidade
#forumsocialmundial2023

GENTE DE PALAVRA - HOMENAGEM À POETA LÚCIA HELENA DOS SANTOS


ACADÊMICOS DA ORGIA EXALTA OLIVEIRA SILVEIRA, O POETA DA CONSCIÊNCIA NEGRA


MARÇO MULHER

EXPOSIÇÃO ESCRITORAS NEGRAS NO INSTITUTO FEDERAL DE ALEGRETE


Abrindo os trabalhos do Março Mulher, estou em exposição no Instituto Federal de Alegrete. Prestigiem!!!

Olá, neste 8 de março, às 10h15, estarei na mesa "Mulheres que escrevem, Mulheres que publicam" no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

TRILHAS CULTURAIS DA LESTE


Do útero ao lápis - encontro cultural com Fátima Farias e Ana Dos Santos - Trilhas Culturais da Leste

CANAL SORORIDADE NA ONU MULHER - ONGS DA COMISSÃO DE STATUS DAS MULHERES

"TRAVESSIAS DE AMANAÃ" NA BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL


#Repost @bpe.rs
Dicas de Leitura
CLUBE DE LEITURA BPE
"Travessias de Amanaã" — de Ana Dos Santos, Carmen Lima, Fátima Farias, Delma Gonçalves, Lilian Rocha, Taiasmin Ohnmacht — é um desses livros que evocam sentimentos, reflexões, dor e renascimento.
Mulheres são, a priori, entidades. unidas, são força real; irmanadas na luta, pólvora; coesas em arte, deusas em ebulição. Amanaã é um ser intuído pelo poder de seis mulheres negras. Uma energia que passa de raiz a semente. O livro reúne textos, poemas e reflexões das seis autoras, em uma construção coletiva de mulheres inspiradas em suas vivências, assim como Conceição Evaristo e Maria Carolina de Jesus.
Boa leitura!
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I JORNADA LITERÁRIA DE ALEGRETE - CONSTRUINDO CAMINHOS PARA UMA CIDADE LEITORA



SEMANA ACADÊMICA DA LETRAS/UFRGS - O FUTURO PROFISSIONAL DE LETRAS: DESAFIOS PARA A PERMANÊNCIA 




𝑸𝒖𝒆𝒎 𝒔𝒂̃𝒐 𝒂𝒔 𝒂𝒕𝒊𝒗𝒊𝒔𝒕𝒂𝒔 𝒇𝒆𝒎𝒊𝒏𝒊𝒔𝒕𝒂𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒍𝒖𝒕𝒂𝒎 𝒑𝒆𝒍𝒂𝒔 𝒎𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓𝒆𝒔 𝒆 𝒎𝒆𝒏𝒊𝒏𝒂𝒔? Ela na luta!
Hoje finalizamos nossa campanha com a mesma pergunta: Quem são as ativistas feministas?
Durante o mês de março apresentamos ativistas que marcam a luta feministas das mulheres prostitutas, indígenas e Trans e não conseguimos seguir com o nosso objetivo de trazer mais duas ativistas gaúchas.
Seus currículos são intensos mas queremos conhecer suas histórias na luta Feminista, momentos, construções, desafios e detalhes.
Em nossas pesquisas encontramos entrevistas, matérias, programas, publicações, projetos e participações, mas nada que detalhasse suas trajetórias pessoais.
Trazer as histórias de luta Feminista da Inclusiva Telia Negrão e Ana dos Santos nos deu a certeza que está campanha precisa continuar e registrar essas lutas de uma mulher negra, professora, escritora e poetisa e de uma mulher que fez da sua vida muitas décadas dedicadas à luta por direitos das mulheres e a construção de uma ong feminista a primeira do país.
Mulheres escrevam e deixem suas histórias Feministas registradas para não sermos apagadas e silenciadas.
Suas histórias precisam ser contadas e deixadas para as nossas!
#HistoriasContadas
#FundoElas
#Inclusivaas
#elasnaluta



domingo, 8 de janeiro de 2023

 

Quais são as conquistas das mulheres ao longo da história (entrevista que concedi ao portal Elas que lucrem)Eduarda Esteves

Ana dos Santos é escritora e professora
Especialistas explicam que mulheres já conquistaram muitos direitos, mas desafios contra a violência e por igualdade entre os gêneros ainda são muitos

Um levantamento divulgado em 2019 pelo Datafolha mostrou que apenas 39% das mulheres brasileiras se consideram feministas. O número ainda é considerado baixo, já que entre as principais bandeiras do feminismo está a defesa dos direitos da mulher com base na ideia de igualdade entre os gêneros. Apesar do movimento feminista ganhar mais evidência nos últimos anos, ele não é novo.

Mas para entender a importância do feminismo para a garantia dos direitos da mulher, é preciso voltar um pouco no tempo e preencher a lacuna da desinformação a respeito do que é o movimento e qual é o seu papel na sociedade.

Não há uma data exata de quando surgiu o feminismo, mas 1791 é um ano importante. Isso porque a francesa Olímpia de Gouges escreveu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, proclamando que a mulher possuía os mesmo direitos que os homens e deveria participar da formulação das leis e da política em geral.

Uma pessoa feminista busca conviver em igualdade de direitos, oportunidades e condições. Mas, apesar dos avanços conquistados na sociedade, a mulher ainda é vista apenas como “sexo frágil” por parte da sociedade e sempre em posição inferior em relação aos homens.

Ana dos Santos, 45, professora de literatura brasileira, escritora e pesquisadora do feminismo negro, explica que o movimento feminista ainda enfrenta barreiras porque falta informação sobre a luta contra os privilégios masculinos. “O objetivo é que todos tenham direitos iguais, mas algumas pessoas confundem com a dominação das mulheres sobre os homens. Também é preciso reconhecer que o machismo mata e adoece as mulheres com a exclusão da mulher do mercado de trabalho, tirando a sua independência, com a romantização do casamento e da maternidade, aprisionando essas mulheres em papéis sociais de obediência e resignação.”

Por que o feminismo é tão necessário?

Por definição mais generalista, o feminismo é o movimento social que luta contra a violência de gênero e pela igualdade de direito e de condições das mulheres na sociedade. A feminista Ingrid Farias, 32, que integra a Rede das Mulheres Negras de Pernambuco, garante que feminismo na prática é, por exemplo, se uma vizinha fica com o filho de outra mulher para que ela possa ir a uma entrevista de emprego.

“Esse é o feminismo que especialmente nós, negras, queremos que chegue em todas as mulheres para que entendam que a luta é sobre direitos. O nosso movimento é necessário porque a gente vive em um país em que as desigualdades ainda são gritantes”, conta Ingrid.

Ela destaca ainda que quando se é mulher e mãe, os desafios são ainda maiores. “Quando meu filho nasceu, poucos meses depois precisei voltar ao trabalho. Na época, em uma loja de shopping. Como fazia pouco tempo, eu ainda amamentava e algumas vezes, durante o expediente, o meu seio ficava molhado. Um cliente entrou na loja e tocou no meu seio e ainda disse que eu não deveria ficar assim na loja. Sofri um assédio por amamentar”, lamenta.

Uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil, durante a pandemia de Covid, segundo pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ou seja, cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual em 2020.

Ana dos Santos pontua ainda que o feminismo é tão necessário justamente porque mulheres são mortas e estupradas todos os dias. “As mulheres negras estão morrendo mais por Covid-19, sem acesso à saúde e a prevenção, sem trabalho para sustentar suas famílias e metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres que não têm como alimentar seus filhos. O genocídio dessas crianças é um fato do racismo cotidiano na vida das periferias, onde se concentram essas famílias negras.”

O Atlas da Violência 2020 revelou que uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil. Já nos dez anos do estudo, de 2008 a 2018, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 12,4%, enquanto a das brancas caiu 11,7%.

Movimento social em apoio às mulheres

Nivete Azevedo, 62, professora e coordenadora geral do Centro das Mulheres do Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife, lembra que ainda quando criança nunca aceitou o fato de meninos terem alguns privilégios e as meninas não poderem nem sentar em uma cadeira da forma mais confortável. “As mulheres tinham essa condição e papel do doméstico, mesmo trabalhando com atividades fora de casa. Aquilo já me deixava bastante intrigada e irritada e eu não entendia.”

O feminismo sempre esteve em sua vida e a vontade de mudar aquele cenário que só prejudicava as mulheres ia crescendo a cada dia. Nivete começou a se envolver com movimentos sociais, principalmente focados no racismo e nas desigualdades. Em 1994 ela conheceu o centro onde atua até hoje.

“A partir daí que eu fui me familiarizar com essa realidade e proposta politica do feminismo. Comecei a enxergar a sociedade por essa ótica, pela visão das mulheres. Queremos um outro mundo com igualdade de gênero e racial, com respeito. O Centro das Mulheres do Cabo foi fundado em 1984 para enfrentar o machismo, o racismo e as violências que as mulheres sofrem. São 37 anos fazendo resistência e alcançando muitas conquistas com essa luta. Isso é o que me move”, conta Nivete.

Por que tantas mulheres não se identificam como feministas

Pesquisas nos Estados Unidos e no Reino Unido revelam que menos de uma em cada cinco mulheres se declara feminista. Para Nivete, isso acontece porque vivemos em uma sociedade machista e a violência contra a mulher ainda é e muito banalizada. “O feminismo se opõe à sociedade machista que mata todos os dias as mulheres por uma cultura que confere aos homens todo o poder de mando e de dominação da vida da mulher. Mesmo com os avanços, de mais de 200 anos da luta feminista, ainda vemos muita violência domestica contra o público feminino, o que foi por meio tempo banalizado, como se a mulher fosse um objeto de posse dos homens.”

A pesquisadora diz ainda que muitas mulheres tendem a apoiar o princípio por trás do feminismo, mas não gostam da palavra. “O que a gente precisa conquistar é ampliar a participação das mulheres nessa possibilidade do conhecimento, da informação, principalmente sobre os seus direitos. O que o feminismo prega é a igualdade de direitos para homens e mulheres, dentro as suas diversidades.”

Uma estratégia fundamental é atuar na formação das mulheres desde a infância. “Justamente porque é desde criança que se ensina que menino pode e menina não pode. Precisamos desconstruir essa educação machista. Não é fácil ser feminista, estamos enfrentando uma cultura secular que tem todas as estruturas já postas, há muito confronto e rejeição. Mas só vamos chegar a uma sociedade igualitária com luta”, diz a coordenadora do Centro das Mulheres do Cabo.

Ingrid Farias concorda que o maior desafio hoje é alcançar essas mulheres que ainda não reconhecem o feminismo como uma ferramenta de libertação de sua autonomia. “Precisamos construir uma narrativa de força política nacional. São muitas batalhas pequenas todos os dias, desde uma creche em nosso bairro, até ter mulheres negras nos espaço de poder”, avalia.

Representatividade na política precisa aumentar

Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostraram que apenas 12% dos prefeitos eleitos no primeiro turno das eleições de 2020 foram mulheres. A representatividade das mulheres no parlamento brasileiro também está muito aquém do peso que elas têm no eleitorado brasileiro, que corresponde a mais de 52,5%.

Na Câmara dos Deputados, por exemplo, das de 513 cadeiras, apenas 77 são ocupadas por deputadas, que corresponde a 15%. No Senado somente 12 mulheres foram eleitas para as 81 vagas.

Sobre as diferenças estatísticas de gênero nos espaços políticos em que as leis são debatidas, Nivete argumenta que romper com os padrões do patriarcado pode ser compreendido como radicalismo, mas não tem outra forma de confrontar, é uma luta de disputa. “Os homens não querem abrir mão dos privilégios que eles têm. Nós também queremos o direito de viver com liberdade, dignidade e igualdade”. 

Uma linha do tempo com o que o movimento feminista já fez por você:

1827 – Meninas são liberadas para frequentarem a escola

Apenas em 1827, com a promulgação da Lei Geral, em 15 de outubro, é que mulheres foram autorizadas a ingressar em colégios, o que antes era proibido para o sexo feminino.

1879 – Mulheres conquistam o direito ao acesso às faculdades

O ano de 1879 também foi muito importante para aumentar o acesso das mulheres aos ambientes de educação. Dessa vez, as portas das universidades foram abertas à presença feminina.

1910 – O primeiro partido político feminino é criado

O primeiro partido político feminino surgiu em 1910. O Partido Republicano Feminino tinha como objetivo defender o direito ao voto e emancipação das mulheres na sociedade. 

1928 e 1932 – Mulheres conquistam o direito ao voto

Apenas 18 anos depois da criação do primeiro partido político feminino as mulheres conseguiram votar. Em 1928, o governo do Rio Grande do Norte conseguiu alterar a lei eleitoral, dando o direito de voto às mulheres do estado. Mas só em 1932, o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, promulgou o novo Código Eleitoral, garantindo o voto feminino em todo Brasil.

1962 – É criado o Estatuto da Mulher Casada

Em 1962, as mulheres casadas passaram a não precisar mais da autorização do marido para trabalhar. Isso porque a Lei nº 4.212/1962 entrou em vigor no dia 27 de agosto daquele ano. A partir de então, elas também passariam a ter direito à herança e a chance de pedir a guarda dos filhos em casos de separação. No mesmo ano, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil. 

1974 – Mulheres conquistam o direito de portarem um cartão de crédito

Já imaginou que mulheres não eram autorizadas a ter um cartão de crédito? Somente a partir de 1974 foi aprovada a “Lei de Igualdade de Oportunidade de Crédito”, para que clientes não fossem mais discriminados baseados no gênero ou estado civil.

1977 – A Lei do Divórcio é aprovada

Na década de 1970, as mulheres não podiam se divorciar dos seus maridos, mesmo que estivessem infelizes nos seus casamentos. Somente a partir da Lei nº 6.515/1977, no dia 26 de dezembro de 1977, é que o divórcio se tornou uma opção legal no Brasil.

1988 – A Constituição Brasileira passa a reconhecer as mulheres como iguais aos homens

Em 1988 as mulheres conquistaram mais uma vitória e passaram a ser vistas pela legislação brasileira como iguais aos homens. Essa mudança foi uma consequência direta das pressões da pauta feminista, aliada com outros movimentos populares na luta pela democracia.

2006 – É sancionada a Lei Maria da Penha

Talvez uma das leis mais importantes dos últimos anos no Brasil. Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de homicídio e lutou por quase 20 anos para que, finalmente, conseguissem prender o seu marido. A Lei nº 11.340/2002 foi sancionada para combater a violência contra a mulher.

2015 – É aprovada a Lei do Feminicídio

Em 2015, a Constituição Federal passou a reconhecer o feminicídio como um crime de homicídio por meio da Lei nº 13.104.

2018 – A importunação sexual feminina passou a ser considerada crime

Em 2018, a lei que caracteriza o assédio como crime (Lei nº 13.718/2018) foi aprovada. A lei caracteriza como crime de importunação sexual a realização de ato libidinoso na presença de alguém e sem seu consentimento, como toques inapropriados ou beijos “roubados”, por exemplo. Agora, quem pratica casos enquadrados como importunação sexual poderá pegar de 1 a 5 anos de prisão.