terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

PALAVRA EM PUNHO DE MULHER - Nanda Barreto (Jornal Nosso Bem Estar)

(...)   Bom, fica aqui a minha sugestão: que tal caminhar por este 2020 arejando as ideias com uma literatura que represente com mais fidedignidade as complexas facetas de ser mulher no planeta terra? Este é um convite também para os homens. Leia suas amigas, conhecidas, pesquise, pergunte na livraria do seu bairro! Atualmente, existem muitos coletivos, blogs e podcasts com este foco. Basta dar uma googlada e um link levará ao outro, nesta vastidão de mulheres que cada vez mais se atrevem a traduzir a si próprias.
    E para finalizar com poesia, quem procurar nas redes sociais nomes como Ana Dos Santos certamente irá entender melhor tudo isso que eu quis dizer."





VIDRÁGUAS - página de poesia de Ive M. Soares






El violador es tu ou Não é esse o tipo de mundo em que vivemos, Thelma - ensaio de Irka Barrios para o site Ruído Manifesto

(...)
Nessas andanças pela vida literária conheci duas mulheres notáveis que trabalham a questão da sexualidade em áreas diferentes e (por isso) tão interessantes. Uma é Ana dos Santos, poeta, feminista, performer. Ana escreve poemas, com predileção pelo erótico e criou uma performance usando o texto e seu corpo. Quando a conheci, numa fala sobre sua arte, Ana relatou que certa vez sofreu mau juízo de pessoas que a assistiram. Cria-se uma situação muito problemática quando espectadores não conseguem definir o limite entre o que é a vida pessoal e a arte. E há uma tremenda falta de respeito pelo trabalho do artista quando este limite é forçado a ponto de se transformar em insinuações desagradáveis do tipo “você gosta disso, é? Hmmm… você faz na intimidade?”. No Brasil de 2019 esse tipo de atitude se tornou comum, e parece que todo mundo se sente imbuído de razão para protestar, difamar e ofender artistas que performam usando seus corpos. Felizmente Ana também tem boas histórias. Contou-me que uma senhorinha se emocionou, chamou-a para uma conversa e disse que era a melhor apresentação que assistiu na vida. (Olha as Thelmas aí, surgindo quando menos esperamos).
 (...)
 http://ruidomanifesto.org/um-ensaio-de-irka-barrios/?fbclid=IwAR3myhv15uLti70cWBM2QzxtzZlVyZ-jUZHfrwPLzo9PjPETeNJrEyCduEo#


CINCO POEMA DE ANA DOS SANTOS NA RUÍDO MANIFESTO

http://ruidomanifesto.org/cinco-poemas-de-ana-dos-santos-2/?fbclid=IwAR2KlDF2DV_stsTDOZFB8dfWsLkxVR36aNilh6A9slxUEmo-PYo8XabdwtY

COMO ESCREVE ANA DOS SANTOS NO BLOG COMO EU ESCREVO

https://comoeuescrevo.com/ana-dos-santos/?fbclid=IwAR2pgaTv3Mh2HYuGnf3GbgzpEBZ5GpOV8Wl_xCxIIFviN5UDAWmFSWNG_-k

7º SARAU DO BAIRRO

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

foto: Afrovulto

O PENSAMENTO DECOLONIAL E AS POÉTICAS ORAIS: SARAUS E SLAMS
 Ana Paula Freitas dos Santos (Capítulo do livro "O pensamento de Rodolfo Kusch: movimentos seminais na América profunda")

   Nas tensas relações entre o cânone literário e literatura periférica, encontramos nos saraus periféricos e nos slams a poesia em seu estado seminal: a oralidade! Essa mesma oralidade que é sempre questionada quando se nega o reconhecimento de narrativas e poéticas da literatura oral como legítimas expressões literárias de todos os povos e de todos os tempos. No Brasil, a oralidade vem marcando presença em saraus periféricos com microfone aberto e nos slams.
   A escrita deste artigo tem a perspectiva teórica e a perspectiva metodológica. No caso da metodológica, eu, Ana Dos Santos, sou poeta e professora pesquisadora. Meu trabalho de campo implicou na participação como poeta nas rodas de poesia do sarau periférico Sopapo Poético e no momento do microfone livre das rodas do torneio de poesia slam.
   A dimensão autoetnográfica coloca-se como parte do processo. Minha voz no texto também é de espectadora de um movimento poético que vem crescendo nos últimos cinco anos na cidade de Porto Alegre. A história desse fenômeno literário-cultural produz um novo olhar sobre o que seria considerado literatura e o que seria reconhecido como poesia, além dos múltiplos possíveis sentidos que o movimento causa no público-ouvinte e na influência narrativa em minha escrita como poeta. Eu, mulher negra, encontrei espaço para a minha existência e expressão da minha voz, numa ação que se pensa enquanto se faz, e que se faz inserida em contextos de diferença e alteridade produzidos pelas diversidades que confluem nesses espaços.
   Precisamos pensar primeiramente, em diferentes conceitos de cultura e arte. Conceitos decoloniais contrários à imposição colonial do que seja a cultura e a arte em geral produzida pela civilização ocidental. Como diz Adolfo Colombres no prólogo de seu livro “Sobre la cultura y el arte popular” (2007), cultura e arte numa relação de complementação à natureza, diferente da oposição natureza x cultura:
(…)la cultura y el arte popular, es decir, los creados por el pueblo, por las clases bajas o subalternas. Por extensión, suele llamarse también arte popular al desarrollado por miembros de otros estratos sociales que adoptan, consolidan y reelaboran los puntos de vista del pueblo, deseando servir a sus intereses de clase y al desarrollo de su conciencia y valores. Cuando Bertold Brecht afirma que un arte, para definirse como popular, debe ser comprensible para las amplias masas y tomar y enriquecer sus formas de expresión, se está refiriendo sin duda a un arte para el pueblo, que será positivo si refuerza a su cultura y negativo en la medida en que la sustituya, subrogándose y expropiando la palabra a las clases bajas. (COLOMBRES, 2007, p.7)

POÉTICAS ORAIS

   As poéticas orais presentes nos saraus periféricos e nos slams estão reorganizando a importância da oralidade, que nos espaços sacralizados que se distanciaram da palavra. É como se resgatar a oralidade fosse profanar a palavra, num rito de celebração dionisíaca onde a catarse do corpo não está separada do verbo, da voz, da oralidade.

   Como lembra Tennina (2013), a palavra sarau não é nova, encontra-se em cartas e crônicas do século XIX na Europa ou nas Américas, ao se fazer referência a reuniões de artistas e intelectuais em salões nobres da cidade, nas quais era tão importante a exibição das práticas artísticas quanto a reafirmação da posição de classe. (2016, FONTOURA, p.154)

   Atualmente, existem saraus em instituições, centros culturais e bares centrais da cidade que reproduzem a estrutura europeia onde os poetas “eleitos” recitam ou leem poemas para um público intelectualizado, geralmente formado por escritores, professores e universitários.
   O recente crescimento dos saraus periféricos no país tem como referência o sarau Cooperifa de São Paulo. Acontece num bar aberto ao público, num bairro periférico. Os poemas são declamados, mas também lidos ou ditos como letras de rap (rythm and poetry) em performances onde o corpo e a voz atuam juntos.
Nele os poemas declamados interagem com a dimensão performativa e territorial do evento para ressignificar o termo periferia com práticas discursivas que ligam o estético e o político. A periferia é apresentada como um processo inscrito em um campo de discursos que produz sujeitos individuais e coletivos e redefine os lugares que esses sujeitos podem ocupar (Nascimento, 2011, p. 160). A rede de saraus aparece, portanto, como um “espaço de contestação estratégica”, que impugna e reconfigura as conotações semânticas da “cultura da periferia”, contra a estigmatização desses territórios. As apropriações de elementos e códigos da cultura letrada (como a própria noção de sarau) não se realizam como imitação para práticas de distinção ou assimilação; pelo contrário, aparecem como valorização do polo historicamente subordinado numa relação cultural hierarquizada: “a cultura da periferia [...] opera num plano de interlocução imaginária com uma ‘cultura do centro’, de modo a produzir e ressaltar a diferença” (Nascimento, 2001, p.24, apud FONTOURA, 2016, p. 154).

   O sarau Sopapo Poético acontece há seis anos em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Além da oposição centro x periferia, o que marca o sarau é a negritude, tema que está presente na maioria dos saraus periféricos e slams pela composição dos protagonistas e do público de maioria negra. A especulação imobiliária no pós-abolição “empurrou” a população negra para as periferias, favelas e morros da cidade. O sarau não é central nem periférico territorialmente, mas é negro por conta do protagonismo da poesia negra. Nesse sarau essa é a regra: só poderá ir ao centro da roda quem ler um poema de autoria negra, que pode ser de um poeta negro ou autoral.
   A oralidade é a linguagem da noite. O microfone também está aberto para falas e divulgação de projetos. O público, na sua maioria negra, compõe o cenário com sua estética negra de belíssimos cabelos “black power”, tranças e turbantes coloridos. As roupas de estampas africanas compõem esse “quilombo cultural”, onde os corpos negros são ressignificados em sua estética e no orgulho da beleza negra.
   Os poemas de protesto contra o racismo, denúncia do apartheid estrutural, desabafos, lamentos e o banzo dão o tom confessional de quem tem certeza que será escutado e compreendido. Foi no Sopapo Poético que os meus poemas negros que estavam guardados na gaveta, pela incompreensão do leitor branco que em sua primeira leitura nunca se vê como privilegiado de sua branquitude ou como racista e acaba por julgar o negro como vitimista pela sua re(clamação) foram entendidos e aplaudidos, porque era uma roda de poesia negra.
   O sopapo, além de papo, conversa, é também o tambor afro-gaúcho que marca os intervalos entre um poema e outro: “Ontem o Sopapo foi batido lá, Hoje o Sopapo está batendo aqui...” (Mestre Giba Giba) O tambor sopapo é o que dá nome ao sarau e dá ritmo à roda. No artigo “As narrativas do tambor como práticas decoloniais” (2019) o cancionista e educador Richard Serraria relata as suas práticas com o tambor sopapo, “instrumento que assume o papel de griô na transmissão da história do povo negro sul-rio-grandense”:
SOPAPO: Instrumento musical de aproximadamente 1 metro e meio de altura e 60 cm de diâmetro, dono de um grave absoluto, esculpido originalmente com tronco de árvore e couro animal, cavalo e gado preferencialmente. Elo de ancestralidade com a Mãe África, ritual de permanência, objeto de eternidade: sopapo, enquanto instrumento profano, exige apenas mãos para ser tocado. Enquanto instrumento sagrado, ligado ao batuque gaúcho, exige apenas devoção das mesmas mãos que faziam a carne de sal e ainda hoje fazem o carnaval. (O Grande tambor, Serraria, 2010 apud SERRARIA, 2019, p.290).

   A oralidade é uma das características da Literatura Negra, literatura essa, feita por autoria negra que exalta a negritude de forma positiva, contrária à narrativa da literatura tradicional brasileira que ora coloca o negro sempre no cenário da escravidão, ora nos estereótipos racistas da sociedade contemporânea.
   O poeta e doutor em Literatura Brasileira Cuti Silva cunhou o conceito “Literatura Negro-Brasileira” (2010) em livro de mesmo nome:
No tocante à literatura, é com o surgimento de leitores negros no horizonte de expectativa do escritor, bem como de uma crítica com tal característica, que haverá um entusiasmo para que a vertente negra da literatura brasileira se descongele da omissão ou do receio de dizer a sua subjetividade. (...) nos primeiros anos do século XX, associações negras de várias partes do Brasil começavam a oferecer uma recepção mais solidária para os escritores, entusiasmando-os a escrever, tendo como endereço direto o leitor negro. Com isso, os autores passam a incluir na sua temática o protesto, desenvolvendo no texto uma consciência crítica. (CUTI, 2010, p.28-29)

   Em 2016, o grupo publicou a antologia “Pretessência – Sopapo Poético” com 19 autores, homens e mulheres negras frequentadores do sarau, que produziram poemas com diversos temas, além do racismo e do orgulho negro, poemas de amor, eróticos, melancólicos, filosóficos, que inscrevem o sujeito negro na humanidade universal que o ocidente sempre excluiu. Eu escrevo, logo existo!
   Percebam que a escrita foi a última ação a ser feita. Tudo começa na oralidade e termina também como um círculo; quando os poetas vão agora ao centro da roda com seus livros em mãos. Os poemas foram escutados primeiro, depois foram lidos pelos frequentadores. O uso da palavra é subvertido, a palavra é apropriada através da oralidade, o subalterno pode falar, e é escutado, o subalterno escreve e é lido!
   Adolfo Colombres em “Defensa de la palavra” (2007) encontra na cosmovisão indo americana o sentido sagrado da palavra, onde o ser e a linguagem são uma coisa só:
   En un principio, se sabe, era el verbo, es decir, la palabra que ilumina la sombra, brotando como manantial inteligente. En la grande Nada primordial irrumpe la palabra en la boca de los dioses, los que sin ella no podrían haber creado el mundo ni a los hombres. Es el viento de la palabra, con su tono imperativo, el que engendra el universo. Entre la palabra pronunciada y el acto no podía haber, en esos luminosos orígenes a los que se remonta el mito, distancia alguna. (…)
Pero existe algo anterior a la palabra, sin la cual esta resulta impensable: la misma voz que la sustenta. La voz transportó a la palabra como un carro sagrado hasta que la escritura la decretó prescindible, al fundar un lenguaje sin voz, privado de una gran cantidad de elementos semánticos que no solo eran usados como recursos del éxtasis, desde un plano éstético, sino también como criterios de verdad poco falibles. Es que la voz, en tanto sonido, no puede dejar de registrar la estructura interna del cuerpo que la produce. Al juzgar esta transmutación, conviene tener presente que la aventura humana no se funda en la escritura, que es un mero artificio exaltado por la civilización occidental, la más grafocéntrica de todas, sino en la palabra, que es fuego nombrador, poder generador y normativo. (COLOMBRES, 2007, p. 199)

   O poder transgressor da palavra nada mais é do que a reapropriação do uso seminal dela: a voz. Os povos ameríndios registram em seus mitos de origem a presença da palavra na fronteira entre o Nada e o Universo. “E o verbo se fez carne” no mito bíblico, nos mitos ameríndios, o verbo se fez luz!
   A voz transportou a palavra como um carro sagrado. A voz que sai da garganta: “A garganta é gruta que guarda o som/A garganta está entre a mente e o coração” os versos da slammer Roberta Estrela D’Alva (2019) atualizam o sentido sagrado da linguagem: está no corpo, não está fora do corpo, nem separada do corpo.
   Na cosmovisão africana, a palavra também é sagrada, é transmitida oralmente de geração pra geração, seus ritos e cerimônias sagrados e secretos foram preservados na memória, de boca pra ouvido, de mestre para discípulo. Os saberes africanos resistiram à travessia dos tumbeiros, ao cativeiro da escravidão, e hoje se mantém vivos nos terreiros, nas rodas de samba, capoeira e poesia negra.
A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente. (Tierno Bokar apud Amadhou Hampté Ba, in KI-ZERBO, 2010, p.167)

O PENSAMENTO DECOLONIAL

   As poéticas orais das cosmovisões indígenas e africanas resistiram no Brasil há séculos de cultura e arte eurocêntricas impostas pelo colonizador português. O epistemicídio dos saberes tradicionais, o desaparecimento das línguas indígenas, a proibição das línguas africanas em território brasileiro, a diáspora interna que separou grupos linguísticos e culturais, a perseguição às manifestações religiosas e o catequismo que sentenciou a presença ou não de almas nesses povos, não foram suficientes para apagar a força da palavra.
   A palavra está presente nos saraus periféricos e nos slams, como uma força ancestral que brota dos territórios que recriam as rodas ancestrais de partilha e comunhão. As rachaduras e rupturas que as poéticas orais produzem no status quo literário criam contranarrativas que batem de frente com o perigo da história única da literatura. Estamos vivenciando um processo de decolonialidade do ser e do saber americano:
Pedagogías que animan el pensar desde y con genealogías, racionalidades, conocimientos, prácticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos. Pedagogías que incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pensar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolonial. (WALSH, 2013, p. 28)

   Aqui falo do pensamento decolonial como expressão de identidades étnicas e grupos sociais subalternizados, ou de algum modo à margem, que recriam e descentram as poéticas ocidentais. Os poetas estão escrevendo a história de luta e resistência dos índios e dos negros que não constam nos livros de história do Brasil. Como todos os documentos dos crimes coloniais foram desaparecidos, escondidos e apagados, a oralidade, a memória e a criação preenchem as lacunas dos protagonismos dos líderes e mártires da nação.
   Zumbi e Dandara dos Palmares, Sepé Tiaraju, Revolta dos Malês, Revolta dos Búzios, Guerras Guaraníticas são recontadas ajustando a lente no foco das pequenas vitórias e grandes resistências. O poeta Oliveira Silveira, poeta da consciência negra está sempre referenciado nas rodas do Sopapo Poético ao lado do Mestre Giba Giba que resgatou o tambor sopapo. “Marielle, presente!” “Amarildo, presente!” “ Rafael Braga, presente!” São os versos que sempre circulam nas rodas de slam.
Esta palabra-fuego de los orígenes está siendo suplantada hoy por la palabra-juego que tanto gusta al pensamiento único, porque no bucea en busca del numen de las cosas sino que se despliega sobre su superficie, en artilugios autocomplacientes que nada revelan. Y como bien se sabe, lo que no revela no rebela.
   Colindante con esta palabra-juego, está el vasto territorio de la mentira, “esa palabra que no se parece a la palabra”, según los africanos, y que corresponde a la inmadurez, la vacuidad, la insensatez y la injuria. El poeta no es allí un prestidigitador, sino un hechicero que busca el secreto de las hondas comunicaciones, de los grandes incendios. Si la palabra verdadera crea el ser de las cosas, la mentira no constituirá apenas un simple mal hábito, sino algo abominable, puesto que puebla el mundo de seres falaces, siembra rencores, confunde los limites, degrada lo sagrado y quiebra el equilibrio de la vida. (COLOMBRE, 2007, p. 199/200)

   A poesia oral está no âmbito da Literatura Oral. Essa literatura ressiginifica os conceitos literários ocidentais que não dão conta do que foi produzido na ferida da imposição da Língua Portuguesa. Se fomos colonizados pela língua e pela literatura, vamos nos descolonizar por outra lógica, por outra poesia, por outra literatura, uma literatura decolonial, que brotou na fissura, que fez o encontro onde tudo era violência.
   Es preciso cuestionar de manera radical la pretendida universalidad de la concepción occidental de la literatura, porque estuvo desde el principio al servicio de una hegemonía. Sólo así podremos abrirnos sin prejuicios hacia otras literaturas escritas, y sobre todo a los tesoros de la oralidad. Para ello, hay que fundarse en la palabra y non en la escritura, en el lenguaje en sí antes que en el texto impreso. El desafío pasa entonces por construir una teoría comprensiva de todos los sistemas, y basados tanto en la escritura como en la autoridad. Tal nuevo orden debe establecer relaciones simétricas, es decir, no jerárquicas, entre sus partes, considerando lo enriquecedor que resultó siempre el diálogo, tanto para la oralidad como para la escritura.
   Esta ciencia de la literatura a crearse sobre tal base será verdaderamente universal, por reconocer todas las prácticas narrativas y poéticas del lenguaje. Además de la historia y la crítica literarias, tomará en cuenta la antropología, la sociología, la filosofía, la semiología y la teoría del arte. Devendrá así algo profundo, que no quedará en el mero comparativismo. O sea, se trata de hacer algo que la literatura comparada aún no logro, acaso por haber descartado en su misma base metodológica (definida en 1951 por Marius F. Guyard) los contextos sociales y las situaciones de dominación. (COLOMBRES, 2007, p. 200-201)

LUGARES DE FALA E LUGARES DE ESCUTA

   Slam é uma competição de poesia autoral que acontece em espaços públicos na maioria das vezes, com jurados escolhidos na hora e entre o público presente, os quais durante um período de tempo cronometrado precisam avaliar as produções dos slammers/poetas que versam, entre tantos temas, sobre os anseios de mudança da sociedade, pautas de lutas dos movimentos sociais, e defesa das liberdades individuais na contemporaneidade.
   A voz é o meio de expressão do slammer, que pode dizer o poema de memória ou ler o que já está escrito. O corpo faz parte da performance, onde é proibido o uso de adereços ou objetos. O olhar é direcionado para o círculo de pessoas que se formam em volta do poeta. É a poesia acontecendo no encontro entre a obra e o leitor (leitor de mundo, citando Paulo Freire), transmitida por esse slammer que deseja vencer a competição, mas que também se satisfaz e se realiza na escuta da sua fala.
      Como pesquisadora, professora e poeta, o que mais me surpreendeu frequentando os slams é o silêncio que se faz para escutar os poemas. No meio da rua, uma roda de quase cem pessoas fazendo silêncio em uma das avenidas mais movimentadas da cidade é quase uma transgressão. Levando-se em conta a maioria do público que é jovem, meu espanto foi ver o respeito e a reverência à poesia, silêncio difícil de encontrar em saraus de espaços fechados, onde o poeta precisa competir com conversas de bar, músicas e celulares que chamam mais atenção do que os poemas.
   O slam é um lugar de fala, mas também é um lugar de escuta. Os jurados precisam avaliar os slammers e conferir notas para cada um. O público-plateia faz silêncio para não perder nenhum verso! Durante a fala do slammer ouvimos reações positivas aos versos mais contundentes: “uow!” “bah”, “ai”! Nada que interfira no silêncio!
   La buena palabra, la palabra fecunda, precisa del silencio. Quien celebra la palabra ama el silencio. El silencio es como una sombra que envuelve a la palabra, afirmando su dignidad, su valor numinoso. Para los bambara de Malí, el verbo verdadero, la palabra digna de veneración, es el silencio, realidad cargada de sentidos, en la que germina el grano de la palabra. También para los tupí-guarani, decía Kaká Werá Jecupe, un escritor de esta etnia, el silencio es el sonido de los sonidos, la esencia del todo. Anade que el sonido y el silencio están orgánicamente ligados al lenguaje guaraní, ya que el silencio sería algo como la sétima sílaba (a las cinco vocales castellanas, esa lengua agrega la “y”, que suena diferente a la “i” latina).
(..) No se puede por eso hablar de libertad de expresión sin instituir el concepto de libertad de recepción, lo que implica una responsabilidad total del emisor frente al contenido de verdad de los mensajes que emite, y también del modo en que lo hace, pues este debe dejar al receptor la libertad de adherir a él. (COLOMBRES, p.200-201)

  
   Participei e participo de diferentes slams. Acompanhava o movimento nacional assistindo os vídeos que se tornam virais nas redes. Até que cheguei presencialmente ao meu primeiro slam. Fui acompanhada de outras amigas poetas do Sopapo Poético. A princípio fomos só assistir uma amiga que iria concorrer, mas ao saber que havia um momento inicial chamado “Verso livre”, fora da competição e com abertura para qualquer poema, nos lançamos à roda.
   Fiquei dois anos só como plateia-ouvinte e poeta no microfone livre. Até que participei como slammer na minha primeira competição. A adrenalina sobe quando os jurados mostram as notas. Os concorrentes são de altíssimo gabarito, me sinto insegura, principalmente por não ser slammer, e isso é uma das discussões do movimento: slammer é poeta? Poeta é slammer? A maioria não vê essa distinção. Todos nós fazemos Poesia.
   Mas o desafio foi maior quando fui jurada. Como mencionei, os poetas são de extrema qualidade. Slam em inglês quer dizer “batida”, “murro”, “pancada”. É preciso levar para a roda versos de impacto, tanto para o espanto quanto para o encantamento. Quem diz os versos de memória ganha pontos. O corpo e a expressão facial também contam. O slammer tem que levar três poemas diferentes, não pode haver repetição. Os prêmios variam entre livros, camisetas e cds.
   Outra discussão do movimento slam é a escrita dos poemas na sua intencionalidade. Escreve-se para causar impacto, “lacrar” e ser classificado, ou escreve-se para si, um poema que nasceu sem intenção de competir e que não se assemelha ao padrão narrativo dos poemas que caibam em três minutos “causando” a reação da plateia que canta: “tchun tcha tcha, tchun, tchu, tcha!”? A maioria concorda que os dois tipos de poemas sintetizam o que é o slam: a celebração da palavra falada (sponken word).
   O poema também pode ser improvisado. Mas, o processo final de todos os poemas é a escrita. O “narrador oral e urbano digital” (Przybylski, 2018) também escreve no papel e nos meios digitais, invertendo a lógica do livro, que começa sempre na escrita para depois ser lido ou recitado em voz alta. No caso dos slammers, o fanzine ou “zine” de produção artesanal tem grande circulação nos slams que começam a ganhar forma de antologias e livros autorais.
   O slam também conta com um espaço no intervalo das batalhas que é chamado de “mic livre” (microfone) onde inscritos previamente, poetas, slammers e público em geral, podem dizer, ler ou recitar poemas de autoria própria ou de outros autores. Os competidores também se inscrevem previamente no local, uma hora antes e devem ter no mínimo três poemas autorais. Os slammers são chamados com o grito do slam e com o coro do público, exemplo: “Poesia contamina! Slam das Minas!”
   Alguns slams têm temáticas de competição: o Slam das Minas só permite mulheres competindo, o Slam Chamego é sobre afeto, o Slam do Gozo é sobre erotismo, etc. Alguns slams têm relação direta com o território onde acontece, como o Slam da Tinga, tradicional bairro periférico de Porto Alegre, assim como em outras periferias da cidade, que ressignificam o próprio termo “periferia”, como um local de produção cultural e referência que se opõem ao centro, com suas práticas discursivas e “escrevivências” próprias.
   O slam tem uma competição mundial, com etapas nacionais e estaduais no Brasil que já foi duas vezes representado por mulheres na final em Paris. Eventos maiores geralmente ocorrem em teatros, bares, escolas e quadras de escolas de samba.
   O slammer/poeta é constituído e atravessado por essas identidades que a própria cultura do slam está construindo no Brasil, país extremamente racista, machista e homofóbico, onde os corpos exterminados são preferencialmente corpos negros, femininos e lgbtq+. Esses sujeitos aparecem nos poemas como o eu lírico que está entremeado na identidade da autoria.
   O caráter competitivo do slam é a sua principal característica que se opõe ao sarau periférico por não ter competição:
... é o caso dos Slams, eventos de ‘batalhas de versos’ que se firmam como espaço de literatura nas periferias, conforme Lima (2016). Os slams são campeonatos de poesias: Normalmente, os participantes tem até três minutos para apresentarem sua performance – uma poesia de autoria própria, sem adereços ou acompanhamento musical. O texto pode ser escrito previamente, mas também pode haver improvisação. Não há regra sobre o formato da poesia. O júri é escolhido na hora e dá notas de 0 a 10, que podem ser fracionadas, explica Jéssica Balbino, escritora e pesquisadora de literatura marginal e hip hop, em entrevista ao Nexo. Entre todos os competidores, a maior nota vence. Os campeonatos não são obrigados a seguir normas rígidas, mas a maior parte obedece a essas diretrizes. (LIMA, Nexo, 2016)

O SILÊNCIO É UMA PRECE!

      Na introdução ao pensamento do filósofo Gunter Rodolfo Kush nos deparamos com uma “América Profunda” (2007), título da obra que faz parte das epistemologias do sul, da América Latina, em oposição ao pensamento do norte ocidental. Kush faz um apanhado dos conceitos iluministas e humanistas da razão científica eurocêntrica para explanar que o pensamento americano fez uma “fagocitação” dessa imposição cultural e o envolveu com o seu “sentir” numa ação decolonial.
Indudablemente, la fagocitación así tomada, como hecho universal, se produce en un terreno invisible, en aquella zona que Simmel coloca por debajo del umbral de la consciencia histórica, ahí donde se disuelve la historia consciente, diríamos la pequeña historia, y donde reaparece la gran historia, en ese puro plano del instinto. La fagocitación no es consciente sino que opera más bien en la inconsciencia social, al margen de lo que oficialmente se piensa de la cultura y de la civilización.  (KUSH, 20017, p. 197)

      A partir de uma intuição da paisagem dos Andes platinos surgem as categorias de um pensar americano. Esse é o conceito de Geocultura ou Geopolítica, o pensar a partir de um lugar. A geocultura dos saraus periféricos e slams se constrói a partir do seu lugar, do seu território. O pensamento decolonial faz a “fagocitação” da cultura de massas, da linguagem empobrecida, da linguagem comprometida com o fetiche da mercadoria (el patio de los  objetos, Kush, 2007, p.186), da publicidade, da manipulação dos meios ideológicos de difusão, linguagem diminuída e corrupta como diz Adolfo Colombres:
   En esta era de palabra devaluada, adocenada, domesticada, se vuelve urgente recuperar ese valor mágico, numinoso, que aún posee el lenguaje de muchos pueblos considerados periféricos, sistemas de pensamiento que guardan claves capaces de salvar al mundo de la desertificación del sentido.
(…) Celebrar el lenguaje es también celebrar a los cultores de la palabra, tanto oral como escrita que aún se empeñan en mantener vivas las pavesas de ese fuego sagrado. (COLOMBRES, 2017 p. 201/203)

   “Fagocitación del ser por el estar, ante todo como un ser alguien, fagocitado por un estar aquí” (2007, p.195). Sendo assim, as poéticas orais têm uma visão que abarca, não exclui, porque há um comprometimento com a América que retoma o antigo mundo, indígena e africano para evitar traumas em nossa vida psíquica e social. Esse é um pensamento seminal, um pensamento situado. O pensamento de Rodolfo Kush.
   As interculturalidades estão em diálogo: América-África-América. São movimentos seminais na América Profunda de Kusch. São trocas em círculos, rodas, saraus, slams. São movimentos decoloniais em espaços de reexistência. Re-existir. Reviver. Insurgir da terra.
   “O silêncio é uma prece!” é um dos cartazes que sempre fica exposto na mão de alguém do público-ouvinte do slam. Os apresentadores que anunciam os classificados estão sempre a pedir silêncio na roda. Muitos que se sentem incomodados com algum murmurejo pedem silêncio.
   Foi no silêncio que Kush observou a América Profunda. Precisou de muito silêncio para escutar os saberes andinos. E depois em seus escritos sugeriu que através do silêncio podemos “ser y estar” (2007, p. 187), ao invés de querer ser alguém. “El mero estar como forma de vida” (2007, p. 193) Uma sabedoria como saber de vida “magma de antigas verdades”:
Y la solidez de esa cultura, su cohesión y persistencia, estriba en lo que llamábamos el estar, que carece de referencia transcendente a un mundo de esencias y que se da en ese plano del mero darse en el terreno de la especie que vive su gran historia, firmemente comprometida con su “aquí y ahora”, (…) (KUSH, 2007, p. 191)


   Acredito que o público-ouvinte que muitas vezes vai às lágrimas nas rodas de slam, pratica este silêncio por cerca de duas horas e meia. Um silêncio que possibilita a escuta, que possibilita a contemplação desses poetas, que ensinam sobre o que podem ser as identidades latino-americanas.
  O slam foi criado nos anos 1980 em Chicago, ao mesmo tempo em que a cultura hip hop tomava forma, mas só chegou ao Brasil mais tarde, nos anos 2000. Segundo Lima (2016) no Brasil, os slams são próximos de outro espaço da literatura das periferias: os saraus. O público das duas manifestações culturais muitas vezes coincidem, e há em ambos, uma interação muito grande entre os participantes: “Mas o slam dialoga mais com o público mais jovem, talvez pelo caráter competitivo, talvez pelo caráter performático, mas existe uma crescente no grupo, o que é muito bacana, porque justamente exercita o ouvir”, diz Jéssica Balbino. Segundo a pesquisadora, o slam contribui na autorrepresentação de minorias, como mulheres, negros, lésbicas e gays e moradores das periferias em geral. “Para competir no slam, a pessoa não precisa ter livro publicado, ser rapper, artista, nada. Vale para donas de casa, taxistas, vendedores, etc. No sarau também, claro. Existe algo de: todos podemos fazer poesia. Todos podemos usar a palavra para nos manifestarmos. Não há necessidade de um livro publicado para validar o ofício de poeta e/ou slammer.” (LIMA, Nexo, 2016)

   Tanto os saraus periféricos quanto os slams, trabalham com a luz da palavra. Palavra que ilumina existências e que dá à luz a si mesma. Essa luz vem do fogo interno. Vem do calor humano Como se todos juntos fizessem uma fogueira no meio da roda. Fogueira que incendeia a mentira e lapida a verdade. Queremos saber a verdade. E se for com lirismo, melhor.
   Por isso, as poéticas orais se constroem na presença. Na presença do corpo. Na audição da voz, na força da palavra. Não bastam essas palavras escritas aqui. Não bastam os poemas nos livros e fanzines. É preciso estar presente numa roda de slam ou num sarau periférico. É preciso olhar no olho do outro. Chorar ou rir juntos. Em comunhão.

BIBLIOGRAFIA

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KUSCH, Rodolfo. America profunda. Obras Completas: pocket 1ª ed.Rosario: Fundación A. Ross, 2007. v.2.  p. 179- 254.

SERRARIA, Richard; SILVA, Liliam Ramos. As narrativas do tambor como práticas decoloniais .Revista Iluminuras, Porto Alegre, v. 20, n. 50, p. 279-297, julho, 2019

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WALSH, Catherine (org). Pedagogías decoloniales. Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68..
 
FONTOURA, Pamela, SALOM, Julio, TETTAMANZY, Ana Lúcia. Sopapo Poético: sarau de poesia negra no extremo sul do Brasil. Revista de estudos de literatura brasileira contemporânea, n.49, set/dez. 2016. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/elbc/n49/2316-4018-elbc-49-00153.pdf
LIMA, Juliana Domingos, O que são slams e como eles estão popularizando a poesia. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/12/20/O-que-s%C3%A3o-slams-e-como-eles-est%C3%A3o-popularizando-a-poesia

PRZYBYLSKI, Mauren Pavão. A voz da poesia periférica por ela mesma: uma conversa com Sandro Sussuarana, do Sarau da Onça. Disponível em http://revistaboitata.portaldepoeticasorais.com.br/site/arquivos/revistas/1/ENTREVISTA%20A%20SANDRO%20SUSSUARANA,%20CONDUZIDA%20POR%20MAUREN%20PAV_O%20PRZYBYLSKI.pdf