Literatura Negra e Literatura Periférica no Brasil
Indicação das Quebradas: tese de Doutorado em Sociologia: A Descoberta do Insólito: Literatura Negra e Literatura Periférica no Brasil (1960-2000).
O trabalho do autor, o pesquisador Mário Augusto Medeiros da Silva (Unicamp/2011), reflete
o compromisso em desvelar os pontos de contato e distanciamento entre
as ideias de literatura negra e literatura periférica.
Abaixo um resumo expandido da tese – o download da mesma na íntegra pode ser feito aqui.
As ideias de Literatura Negra e
Marginal/Periférica aparecem no Brasil ao longo do século XX. Estão
intimamente ligadas às formas de associativismo político-cultural dos
grupos sociais de origem. Geraram um número significativo de autores,
temas, proposições estéticas e políticas. Existem escritores que se
atrelam àquelas ideias imediatamente e as defendem; outros, apesar de
negros e/ou periféricos, as repelem. Todavia, quase todo escritor negro e
periférico teve, de alguma maneira, de se referir a elas ou foi
discutido nesse diapasão, quando surgiu na cena pública como autor. Isso
provoca discussões interessantes: o escritor negro/periférico é
necessariamente autor de uma Literatura Negra/Periférica? Na passagem de
personagem a autor, o que é tematizado literária e socialmente por
esses escritores? Por quê as ideias de Literatura Negra/Periférica não
surgem e se desenvolvem como proposições estéticas “puras”, tendo que
lidar geralmente com as questões sociais nas quais seus grupos de origem
estão envolvidos?
Foi selecionado um recorte temporal que
abarcasse o período contemporâneo, onde uma autora negra brasileira se
torna mundialmente famosa por sua escrita e tema, tão singulares quanto
sua origem social. Em 1960, a favelada catadora de papéis Carolina Maria
de Jesus sai do anonimato com a publicação de Quarto de Despejo. Por
uma série de razões, seu livro se torna um sucesso enorme e, por tantas
outras, entre 1962-1977, ela desaparece progressivamente até sua morte,
quase tão anônima quanto seu surgimento. Em 1997, outro autor negro de
origem favelada se torna um escritor discutido quase quotidianamente,
repetindo e ampliando o sucesso de De Jesus: Paulo Lins publica Cidade
de Deus, um dos grandes romances da década. Entre ele e De Jesus existem
uma série de aproximações, que são discutidas na tese. Mas também é
interessante a maneira como eles lidaram com as questões sociais
referentes a seus grupos e condições originais, bem como as ideias
estéticas que seus pares, ativistas, escritores e intelectuais negros
lograram criar.
No espaço histórico que os separam,
surgem os Cadernos Negros, publicação editada autonomamente por um grupo
de escritores, a partir de 1978 até os dias correntes. Vários de seus
membros estão ligados a diferentes momentos do ativismo
político-cultural negro no Brasil, o que faz da série de poemas e contos
algo muito interessante para o estudo, por duas razões: são autores que
se inserem marginalmente no sistema literário, com uma proposta
estética particular, que se pauta pela ideia primeira de ser o escritor
negro escrevendo a partir de um ponto específico, tanto da condição
social como literária; além disso, a série e seus autores estavam
ligados à própria história do associativismo negro no Brasil. Apesar de
assumirem o rótulo de serem criadores de uma Literatura Negra, isso não
significa, no entanto, que haja consenso entre seus escritores sobre o
que é, para quem serve, como escrever, por quê escrever etc. sob este
denominador.
O mesmo vale para a produção mais
recente. Em 2000, com a publicação de Capão Pecado, Ferréz recoloca em
debate o tema da Literatura Marginal, também chamada de Literatura
Periférica. Logo após o surgimento de Paulo Lins, de origem social
semelhante a este autor e Carolina M. De Jesus; além disso, procura
criar um movimento estético e político, cujos vários dos ícones
literários e ativistas pertencem ao universo negro. Coloca também a
ideia de periferia em debate na cena pública, gerando uma série de
discussões muito parecidas com as criadas em torno de De Jesus e Lins.
Esses autores e seus livros foram
estudados na tese, portanto, com a perspectiva de que processo social e
formalização estética estabelecem diálogo e interpenetração. No decorrer
da pesquisa, foram-se abrindo, em função dessa última hipótese, uma
série de subtemas que se procurou explorar. A relação entre as Ciências
Sociais e o ativismo político literário-negro, em momentos específicos
de desenvolvimento de ambos; após 1964, um longo intervalo em que o
ativismo e associativismo se mantiveram em surdina, para o ressurgimento
em 1978; a complicada relação com a crítica literária; as trajetórias
sociais, individuais e literárias como formações lacunares; o embate
entre diversidade e desigualdade; a condição marginal da história e
produção da Literatura Negra, no sistema literário como elemento
aproximativo da Literatura Marginal/Periférica Contemporânea; os
desencontros entre essas duas confecções estéticas e seus produtores,
entre outros.
O título explicita a ideia de Insólito.
Trata-se de uma provocação. Na história literária brasileira, passou-se
ver o escritor negro como uma espécie de avis rara, o que redundaria num
sujeito fora de lugar, tanto no sistema literário como em meio ao seu
grupo social. Dadas as condições sociais de produção e surgimento dos
autores – em particular os estudados nesta tese – não raras vezes se
questionou como foi possível a criação literária ter aparecido em
cenários tão inóspitos ou deslocados. O insólito opera não como um
elemento do universo fantástico; mas sim, como uma via de mão dupla do
quotidiano. Pauta-se, por um lado, pela história e condições sociais a
que negros e periféricos majoritariamente se encontram e vivenciam; por
outro, a negação da negação, o princípio de afirmação do eu e do sujeito
social, que faz com que o ativismo político e a criação literária de
autores negros e periféricos se tornem possíveis. O insólito existe
porque existe a História e nela se desvelam horizontes de
possibilidades, que se confirmam ou não.
Contudo, o insólito se apresenta assim
também porque se constroem prejulgamentos sobre os lugares naturais e
naturalizados para sujeitos nascidos e socializados em determinadas
condições sociais. Quando ocorre a negação da negação, gera-se a
pergunta de espanto. Em diferentes aspectos da história do grupo negro e
periférico, essa negação se operou através da Literatura e/ou do
ativismo. E é sobre isto que a tese procura dissertar, centralmente.