sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

 Minha resenha do livro "Libertê" de Atena Beauvoir para o site Leia Mulheres.


Libertê

POR: ANA DOS SANTOS | EM: 7 / JUNHO / 2019

É Libertê mesmo! Neologismo criado por Atena para a palavra liberté da língua francesa. Também não é coincidência o Beauvoir do seu nome. Atena é uma artista criativa que através da sua formação existencialista, pariu a si mesma e ao seu projeto estético-ideológico. E por último, não obstante, “Philosophia” com ph, para demonstrar que o exercício de pensar é antigo, assim como o de questionar o que se pensa.

A capa traz uma pilha de livros demonstrando a ávida leitora que está sempre debruçada nas obras completas dos filósofos. Libertê é dedicado ao companheiro de Simone de Beauvoir, Jean-Paul Charles Aymard Sartre. Acredito que escrever, assim como para Atena, é uma das saídas para não enjoar da “náusea” da existência. E através de um renascimento, podemos ser outros, múltiplos, plenos!

“Seus estudos enfocam a filosofia como base teórica para a tese existencialista do conceito de transantropologia”. É com essa afirmação que Atena nos é apresentada. E a palavra “transantropologia” salta aos olhos. Em nossa mente surgem várias perguntas:

“O que é isso? Transantropologia?”, “O que é antropológico?”, “O que é trans?”. Vamos às definições do dicionário:

– antropologia: estudo do homem, sua origem, evolução, cultura, etc.

– trans: além de, através de, mudança, deslocamento,…

O que está além do homem? O que vemos através do homem? De que homem estamos falando? Retorno ao dicionário:

– homem: adulto do sexo masculino, raça humana, o ser humano, indivíduo corajoso,      viril, pessoa de confiança de alguém, marido, amante,… Nesse mesmo verbete, temos o feminino de homem, que é “mulher”:

– mulher: o ser humano do sexo feminino, esse ser na idade adulta, esposa,…

A poeta responde algumas indagações no prefácio que abre o livro: “Quero dizer que sei de mim e muito pouco do que escrevo. E ao escrever, termino em mim, a saber um pouco do que desconheço.”

Porém, outras indagações surgirão ao longo dos poemas. Partindo de uma filósofa, o eu lírico brinca com as palavras “ser” e “nada”, e nos leva a uma viagem intimista. Atena divide conosco o seu processo de transição. A primeira reflexão que surge é: “Quem somos?” Para logo chegar a outra conclusão: Será que estamos existindo plenamente???

 “… Havia outra em mim,
Agora, liberta
Ele, tornou-se coisa
Para quem o desconhece.
Era ela, agora, repousa,
Pétala singela e asas abertas.”

A noção de construção de identidade é um processo contínuo. Atena não traz certezas, questiona o seu próprio processo e não se vê terminada, pronta. Mas, com certeza, foi na escrita que conseguiu expressar o ser:

“… Quando se quer estar
Respirar, ser,…
E eu, que sou ela,
Descubro sem derramar sangue.
Há em mim, uma lança eterna.”

É no espaço do Nada, que podemos ser Tudo! É no espaço do Nada que se pode construir o Eu. É no espaço do Nada que construímos relações:

“… transbordarei sentimentos nas palavras…
E sabes, que jamais será fadado
Ao fim de ti, ser inoculado
Pois que o nada é retornar eternamente ao existir.”

Atena é imortal, como a deusa do Olimpo. E nos convida a exercitar nossos mergulhos no mistério:

“A liberdade é a distância entre você e seu eu.
Libertê seu ser.
É um breve adeus.” (Atena Beauvoir)

Ana Dos Santos

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 Minha resenha do livro "Negra Soul" de Lilian Rocha para o site Leia Mulheres


Negra Soul

POR: ANA DOS SANTOS | EM: 24 / SETEMBRO / 2018

“Negra/ Palavra/ Bendita/ Que saiu/ De tua boca…”

 A poesia é um gênero literário que vem ganhando destaque nos últimos anos devido ao seu caráter mais “econômico” como revelou a poeta afro-americana Audre Lorde, econômico no sentido de “… requerer menos trabalho físico, menos materiais e a que pode ser feita entre turnos…”. Trago aqui essa fala para poder justificar também o aumento dos saraus onde a poesia vem retomando o seu lugar de origem: a fala, a oralidade. E onde estão surgindo novos  poetas atraídos pelo microfone aberto.

O segundo livro de poemas de Lilian Rose Marques da Rocha, mais conhecida como Lilian Rocha, vem sintetizar esse movimento poético com as tintas dominantes desse novo cenário: feminino e negro. Esse protagonismo despontou como uma necessidade de se preencher as lacunas da literatura brasileira, espaço que, segundo pesquisas científicas, é um cenário dominado pelo homem branco. Não foi somente uma necessidade de expressão, porque essa sempre está presente nas almas artísticas, mas a necessidade da mulher negra ser lida, escutada e reconhecida. A necessidade de ser visível, pois o machismo e o racismo vêm escondendo por séculos, nossas escritoras e principalmente, as escritoras negras.

A capa de Negra Soul traz estampada a imagem do rosto da nossa poeta, desenhado pelo artista visual Paulo Correa. A leitura do livro começa por aí, leitor. Lilian está com o microfone em punho e sua boca está nos dizendo algo: “Negra Soul”. Eu sou negra, “Negra Soul”! Minha alma é “Negra Soul”! E não é apenas um trocadilho com o gênero musical “Soul”, que nasceu do rhythm and blues e do gospel afro-americano e da palavra “soul” que significa alma em inglês. Lilian tem uma voz especial que encanta a todos que a escutam dizer seus poemas e que tocam fundo a nossa alma.

O poema título, “Negra Soul” fala sobre ser uma mulher negra no sul do Brasil. Estado particularmente racista, que insiste em “apagar” a cultura negra que está presente em tudo no país. Lilian traz em seus poemas a força da ancestralidade africana que reverbera na musicalidade do tambor, mais precisamente o tambor afro-gaúcho, o sopapo. Foi no coletivo de poesia negra “Sopapo Poético” que Lilian se destacou por sua voz e sua presença, que junto com seus poemas, performam toda uma sabedoria, filosofia e luta antirracista da mulher negra. Não basta ler Lilian Rocha, é preciso assisti-la:

“Pixaim

…Quem tem medo do meu cabelo pixaim?/ Assim, assim/ Também deve ter medo/ Do meu falar alto,/ Do suingue do meu corpo,/ Da minha ancestralidade…”

Mas Lilian não escreve apenas sobre a identidade negra, tema que está presente no seu primeiro livro: A Vida Pulsa- poesias e reflexões. Lilian é uma poeta sensível ao cotidiano e à nossa sociedade. Assim como expressa uma busca espiritual que se reflete na exaltação da vida em seus poemas:

“O olhar

Ventre/ Pulsação/ Da vida/ Marcado/ No ritmo/ Da existência/ Luta/ Branda/ Pelo ecoar/ Faminto/ Do grito/ Da sobrevivência/ Humana.

Nascemos/ Choramos/ Ou não… / Mamamos/ Porém/ Ainda falta/ O olhar/ A poética/ Do encontro/ No qual me reconheço/ E esqueço tudo mais.

Agora sim/ Olho-te/ E te vejo/ Em mim/ Ah, que alívio… Mãe!”

Muitos poemas revelam a mudança do lugar da mulher na sociedade brasileira, que vem ocupando espaços até então restritos aos homens e que vem invertendo os padrões e papéis destinados pelo patriarcalismo:

“Lilith

Quando Adão sussurrava/ Abriam-se as portas do paraíso/ Quando Lilith gemia de prazer/ Não foi sequer chamada de pecadora/ Foi eliminada da história./ Hoje, exibes o teu falo/ Em nome da honra/ E por mais que mil Marias da Penha/ Gritem de dor/ Haverá uma costela no meio do caminho/ Impondo o seu direito à propriedade./ Não queremos mais Evas!/ Liliths ressurjam das cinzas/ E entoem o hino/ do pulsar prazeroso da Vida.”

Na busca pela escuta atenta de sua poesia, Lilian começou a participar dos Slams, batalhas de poesia nas ruas, com espaço para dizer versos livres. O Slam é o palco da poesia oral mais acessível e democrático que existe. Os jovens poetas do centro e da periferia, assistem em silêncio e reverência a poesia contemporânea, que Lilian Rocha sintetiza tão bem:

“Golpes Sórdidos

No cair da noite/ Ratos comungam/ Golpes sórdidos/ Migalhas aos pobres…/ Ironia e hipocrisia/ Da história mal contada/ E deglutida em soluços/ Por uma maioria maltrapilha,/ Surrada e abatida/ Enquanto belas e recatadas/ Dormem em seus lençóis de seda/ Subalternas vices/ Da meritocracia brasileira.”

Negra Soul é um livro para ser lido e sentido com a alma. Se você prestar atenção, escutará um coração ressoando! É Victória Santa Cruz, poetisa negra peruana que gritou em alto bravo o poema: “Gritaram-me Negra!” e Lilian Rocha respondeu: “Negra Soul!”

Ana Dos Santos