sábado, 12 de março de 2022

 Conheça Maria Firmina dos Reis, primeira escritora negra do Brasil.


Meu nome é Ana Paula Freitas dos Santos, professora de Literatura e poetisa, autora dos livro "Flor" e "Poerotisa".
Sou especialista em História e Cultura Afro-brasileira e mestranda em Estudos Literários/UFRGS.
Faço parte do catálogo "Intelectuais Negras Visíveis" (UFRJ/Editora Malê) e ocupo a cadeira 100 da Academia de Letras do Brasil/RS, patrona Lélia Gonzales.

Me apresento primeiro para lhe contar como cheguei em Maria Firmina dos Reis!
Em 2015, iniciei uma pesquisa sobre escritoras negras brasileiras para levar à sala de aula e preencher uma lacuna no cânone da Literatura Brasileira, constituída em sua maioria por 90% de escritores do sexo masculino, brancos, classe média alta e dos grandes centros urbanos, segundo pesquisa da UNB.
Eu mesma conhecia poucas escritoras negras. Sendo uma escritora também, logo, a minha pesquisa também tinha um interesse pessoal em conhecer minhas predecessoras.

Foi na internet, em páginas de Literatura Negra e Universidades que tomei conhecimento da existência de Carolina de Jesus. Essa foi a primeira escritora negra que levei para a escola e que teve uma grande e excelente repercussão entre os alunos. Por conta dessa pesquisa, fui fazer duas especializações sobre a lei 10.639/03 que trata da obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todos os níveis e modalidades de educação do país.
Continuei minha pesquisa e então descobri Maria Firmina dos Reis!

Hoje eu ministro uma oficina de escrita criativa "Mulher Negra, Meu Corpo, Minha Voz" onde eu apresento cerca de 40 escritoras negras brasileiras, mas eu sei que já temos mais de 100 escritoras negras em todo o Brasil!

Minha pesquisa ganhou força em 2018 quando a Universidade Federal do Rio Grande do Sul colocou "Quarto de despejo: diário de uma favelada" de Carolina Maria de Jesus na lista das Leituras Obrigatórias do vestibular!
Então, levei a Maria Firmina dos Reis e seu romance "Úrsula" para a sala de aula! A entrada dessa escritora no currículo alterou o estudo do período do Romantismo brasileiro, porque agora ela é considerada a primeira escritora romântica brasileira!
O romance "Úrsula" é um romance abolicionista escrito quase um século antes do poema "Navio Negreiro" de Castro Alves. Ou seja, uma mulher negra e livre teve a coragem de denunciar os horrores da escravidão num romance onde os personagens negros são humanizados, têm voz própria e são a referência moral da narrativa.

A personagem Suzana é a primeira na Literatura Brasileira  a narrar como era a vida em África, onde ela vivia feliz com sua família, com trabalho e liberdade. Ela conta do sequestro e da passagem no navio negreiro para a página vergonhosa da escravidão no Brasil.
Com o estudo desse romance os alunos aprenderam que a história da população negra começa em África, com uma vida digna e liberdade. "A história do negro foi interrompida pela escravidão", como dizem nossos ancestrais. Os alunos aprenderam também que ninguém se deixou escravizar, que as torturas e castigos físicos aos quais os negros foram submetidos não puderam aprisionar suas almas, como demonstra o personagem Túlio em seus atos de heroísmo e fraternidade.

Maria Firmina dos Reis escreve um romance aos moldes românticos da época, tendo a natureza como cenário, no caso as belas paisagens do Maranhão; o casal romântico formado pelo mocinho e mocinha brancos, no ideal esperado de beleza eurocêntrica; com uma linguagem rebuscada e cheia de adjetivos no português castiço do século XIX, demonstrando assim como Maria Firmina dominava a norma culta e era uma leitora culta que inclusive dominava o francês e o latim. Por fim, o contexto sóciohistórico da escravidão,  que até então não havia sido abordado pela visão do negro, do escravizado, do colonizado. Essa é a grande contribuição de Maria Firmina dos Reis para a Literatura Brasileira, uma narrativa decolonial.

Eu encontrei uma imagem de Maria Firmina num concurso de selo comemorativo da Academia Ludovicense de Letras onde o artista a desenhou conforme as descrições das testemunhas da época. Essa é a imagem que segue em anexo e que utilizo no meu trabalho. A invisibilização da mulher negra foi o que manteve Maria Firmina desconhecida do público leitor brasileiro durante todos esses séculos! Por que o romance não teve divulgação? Por que as livrarias não venderam? Por que não se escreveu sobre ele nos jornais? Por causa do racismo! O racismo é o legado da escravidão que invisibiliza todas nós, mulheres negras!

O que se esperava de uma mulher negra na época? Que continuasse na subalternidade, servindo aos brancos. Não se esperava uma mulher negra alfabetizada, com estudo! Não se esperava que uma mulher negra fosse professora; que ousou abrir uma escola para crianças pobres que 2 anos depois foi fechada! Maria Firmina acreditava no poder da Educação, ela queria um futuro diferente para aquelas crianças! Depois da abolição, os negros ficaram proibidos de frequentar a escola por mais de um século no Brasil!

Eu vejo o racismo como o sistema responsável por tornar as pessoas negras invisíveis! São escolhas que definem quais autores devem ser lidos, publicados, estudados, conhecidos e reconhecidos! Escolheram ocultar Maria Firmina dos Reis e em seu lugar colocar a imagem de uma mulher branca! Pois assim, nenhuma mulher negra se imaginaria nesse papel de intelectual, nesse lugar de fala, nessa escrita divergente que ousou denunciar uma sociedade injusta e criminosa.

Devemos reconhecer a importância da universidade brasileira, que através de seus pesquisadores estão retirando o véu do racismo que também ocultou outras escritoras negras do início da história literária como Rosa Maria Egipcíaca da Cruz e Auta de Souza! É comprovado que não foi por incapacidade intelectual que o Brasil não conhece suas escritoras negras, mas sim, por falta de oportunidades! A exclusão literária leva em conta sobrenomes europeus, dinheiro para publicação, circulação restrita em editoras, livrarias e prateleiras de bibliotecas. O romance "Úrsula" foi encontrado num sebo!

Se não nos incomodarmos com a tardia aparição de escritoras como  Conceição Evaristo, Míriam Alves, e tantas outras mulheres negras, vamos continuar com esse ciclo de silenciamento, invisibilidade e apagamento. Chegou a hora do Brasil conhecer sua história completa e verdadeira, sem omissões, e a mulher negra não pode estar de fora!

(Entrevista para o Jornal "Em Tempo" de Manaus em 2020)




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