sábado, 2 de janeiro de 2021

 CARTA


TRILHA SONORA DA SAUDADE

“... desejo o que não vivi/desejo antigo de te encontrar...”

 

   Que ironia... você foi uma das últimas pessoas que abracei antes da pandemia. Meu coração disparou quando te revi em meio à multidão. Senti de longe o teu frio na barriga. Só restou ir ao encontro um do outro, num abraço desajeitado, mas sincero como sempre foi nossa amizade. Há quanto tempo não nos víamos? Meses...

 

“... já faz tempo eu vi você na rua,/cabelo ao vento, gente jovem reunida...”

 

   Sim, te vi no meio do verão, passei de táxi pela rua dos bares. Você estava conversando e sorrindo. Aquele sorriso lindo que me despertou numa manhã de dezembro. Era 2019. Nós dormimos de conchinha. Um sono profundo, depois de se amar toda madrugada. Eu disse amor? Talvez, fosse paixão! Mas com certeza era calor, fogo, chama. Agora, presa nesse isolamento social incalculável, eu tento reproduzir essa noite, dormindo de conchinha com meu travesseiro.

   Amizade, paixão, caso, rolo, crush, etc. Os relacionamentos líquidos são a tônica do século XXI. Só não sabíamos como se relacionar em meio a uma pandemia. A Organização Mundial da Saúde disse que o vírus é altamente transmissível através do beijo. E que só algumas posições sexuais são seguras. Bom, eu não queria só fazer sexo com você. Mas o teu beijo, ah, o teu beijo mataria minha fome, minha sede. Eu sinto saudade é do teu beijo...

 

“Não se admire se um dia,/um beija-flor invadir,/a porta da tua casa,/te der um beijo e partir,/fui eu quem mandou o beijo,/que é pra matar meu desejo,/faz tempo que eu não te vejo,/ai que saudade d’ôce...”

 

   E se a gente morrer? Eu penso na minha morte todos os dias, porque tem cerca de mil pessoas morrendo diariamente no Brasil. Eu mesma, já perdi algumas pelo caminho. A gente deu um azar danado de nascer nesse país... E se eu morrer...você nunca vai ler essas palavras...E se você morrer? E a gente nunca mais se ver? Pensando assim, você foi a melhor coisa que me aconteceu antes da pandemia. Você se tornou o meu amor. E é em você que gosto de pensar nos dias ruins.

   Gosto de lembrar dos nossos encontros, os casuais e os combinados. Lembro até das roupas que a gente vestia, e lembro das roupas que a gente despiu. Era muito desejo guardado, muita conversa dividida enquanto a gente era, só, amigos...

 

“Quando a gente conversa,/contando casos, besteiras,/tanta coisa em comum,/deixando escapar segredos,/e eu não sei em que hora dizer,/me dá um medo, que medo...”

 

   Não, eu não vou me declarar pra você. Até porque eu não tenho mais o teu telefone. Foi aí que a gente parou de conversar. Até hoje, você não me respondeu a última pergunta que eu te fiz... Então resolvi te esquecer e apaguei teu telefone. Mas, bah... eu queria te contar tanta coisa que aconteceu antes da pandemia, tu tinha razão em algumas profecias que se realizaram. Aquele dia, não deu pra gente conversar, os dois estavam acompanhados. Mas, se eu pudesse, talvez nem conversasse. Eu iria te tirar pra dançar. Tudo o que eu que eu queria era dançar com você. Nossos corpos se entendem melhor do que nossas palavras.

   Não, eu não vou te mandar essa carta. Acho que você é que devia me escrever. Sinto que quer me dizer algo, porque você sempre aparece nos meus sonhos. Você fala, mas a voz não sai.

   Também acho que depois do isolamento, se ele acabar um dia, eu também não vou te procurar... Quero ficar só com as lembranças boas, da gente dançando coladinho em meio à aglomeração do samba. Também acho que não vai ter mais esse tipo de aglomeração... Quero lembrar das noites estreladas, da cerveja gelada que bebi nos teus lábios e do brilho do teu olhar, sorrindo pra mim, enquanto eu acariciava teus cabelos. Essas lembranças, nenhuma tragédia pode apagar, nem o tempo, nem o mar...

 

“Se um dia ocê se lembrar,/escreva uma carta pra mim/Bote logo no correio/Com frases dizendo assim:/Faz tempo que eu não te vejo/Quero matar meu desejo/Lhe mando um monte de beijos/Ai que saudades sem fim!”

 

Ana Dos Santos

P.S. (trechos de música de Mahmundi, Belchior, Luiz Gonzaga e Cazuza)

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