DAN e ANA, a criação carregada na boca
por Eliane Marques, poeta, ensaísta, editora responsável pela Escola de Poesia,
e Adriano Migliavacca, poeta e tradutor.
Não sei se todos os livros até hoje publicados pela Figura de Linguagem empurram o leitor diretamente ao texto, num movimento brusco de corte da intermediação do índice, como se lançada ao mar a agulha imantada da bússola que aponta o norte magnético ou como se silenciada a voz de mando que se anteciparia ao canto e que balbuciaria sem saber propriamente de que topos.
Contudo, se a editora já o fez, tal recurso, em POEROTISA, estreia de Ana Dos Santos no poema escrito, se reconhece por fora do recurso, pois a sua falta, no livro específico, assume a dimensão de um significante, ou seja, aquilo que, numa situação própria de linguagem, enuncia o que terá um cambiante e correspondente simbólico cujas possibilidades de sentido apenas ao final se abrirão.
Ultrapassado o que não existe, sua falta instituirá a palavra - ela mesma um buraco - que funda o primeiro poema, que funda o livro mesmo como um reservatório de frutos-objetos estéticos e que faz a abertura dos caminhos pelos quais Ana Dos Santos se intromete como poeta. Refiro-me ao O, que parece nos dizer homem, mas que, no seu oco, diz outra coisa, ou seja, diz daquilo que sustenta os objetos de fruição, de gozo-outro, num movimento de circularidade e de continuidade, a serpente mesma que quase morde o próprio rabo.
"O/índio/ainda/anda/ainda/sendo/ainda/índio"
Sabe-se que a serpente como sabedoria, fecundidade, segredos, infinito, proteção das fontes e como a força criadora terrena, ainda resiste na Índia, Grécia, Egito, Roma, Oriente, resiste nos povos indígenas das Américas, entre outros; contudo, é na tradição africana jeje, pois aí seu lugar mais incômodo, que situarei o O que inaugura POEROTISA e que se impõem terrenamente rastejante em suas veredas.
Os jejes conheciam a serpente Dan, existente mesmo antes da sua fundação do mundo. De acordo com certas fontes, Dan teria carregado na boca a divindade Mawu durante a passagem de tempo necessária para que ela (Mawu) erguesse a terra do fundo d'água e a sustentasse com pilares entrepostos entre as partes seca e molhada. Havendo dificuldade nesse trabalho de sustento da terra pelos pilares, por não suficientemente fortes, Dan foi novamente convocada. Agora, com seu corpo, sustentaria o seco, interpondo-se entre ele e o molhado.
Assim a serpente é o sustém da criação da terra.
Assim esse O serpenteia a circularidade de seu oco em toda a eroestética de POEROTISA com um poema sem nome, composto por linhas de uma só palavra e por versos de uma e de duas sílabas métricas alternadamente (1/2/1/2/1/2/1) , Ana Dos Santos dança com os donos da terra, a quem assim reconhece ao situá-los onde se supõe a origem do que é continuidade.
Mais rito/cerimônia que encenação; mais gozo-outro com o objeto do que objeto de gozo para o outro/dominação, e aqui seu enlace com Eu não estou sambando para ti , a dança que a poeta compartilha está marcada por batidas de pés contra o terreno num compasso binário, num revezamento entre forte e fraco que ela emula ao revezar silaba tônica e sílaba átona em cada linha do primeiro texto. A equivocada tradição branca brasileira chamaria esse pé rítmico de troqueu ou trocaico, mas obediente ao giro suleante feito pela autora quando rompe com os índices que apontam o norte, prefiro chamá-lo de "pés-contra-terra", por me continuar faltante-falante a língua ancestra.
A circularidade e a continuidade de Dan também aparecem nos inícios de Ana quando ainda no poema O reitera a aliteração dos fonemas 'nd', talvez como modo de tornar presente a planta dos pés contra o terreno daqueles que não tinham pés de galinha, para parafrasear a Leonora Miano de Estação das Sombras, ou talvez como forma de ratificar o não como quebra de um estado de coisas que se mostrará no correr do livro.
O "ainda sendo" do texto-primo, na sua condição de presença e constância, simultaneamente contrasta e se assemelha ao tempo anafórico do "era uma vez" do texto que ponteia, mas não fecha o círculo. Embora a repetição do "era uma vez" evoque a ideia de permanência, Ana corta com a adaga que não tem esse tempo que não foi quando escreve: Era uma vez,/não é não!
Em "Os usos do erótico: o erótico como poder", Audre Lorde também fala de Dan, embora não o nomeie como tal. Desse texto destaco a passagem em que presumo mais intenso o corpo da serpente jeje. Audre conta que "Durante a segunda guerra mundial, comprávamos potes de plástico hermeticamente fechados com uma margarina incolor dentro, que vinha com uma pequena e densa de corante amarelo, (...). Deixávamos a margarina no sol um tempo, para amaciar, e aí furávamos a pequena cápsula na massa macia e pálida da margarina. Então, pegando a embalagem com cuidado entre os dedos, balançávamos cuidadosamente pra frente e pra trás, várias vezes, até que a cor estivesse se espalhado completamente por todo o pote de margarina, colorindo-a perfeitamente".
O colorido de que fala Audre, sendo o que se espalha, o que se movimenta e colore, sendo o que serpenteia e que produz o gozo-outro é tão circular quando Dan, tão circular quanto a roda da cura/que gira, do poema "Só papo poético". Aí Ana também reconhece um O. Contudo, ao lado da roda da cura, a poeta memenbra a roda que enferma, a roda do trabalho terceirizado, falo do poema "As negras já estão".
Ana Dos Santos também elabora muito bem formas de atualização dos mitos diaspóricos, no sentido de um discurso que, de modo peculiar e deslizante, alheio às concepções de verdade ou de mentira, fala de um povo e de suas tradições. Registra-se tal atualização quando, por exemplo, ela escreve "Dandara é guerreira/porque chove na sua horta/e ela vai vender na feira" ou ainda em "Pretas velhas", quando escreve "Deixa eu te contar/das pretas velhas da minha família".
Nesse poema ("Pretas velhas"), em que velhice e juventude se acirandam em corpos negros femininos, jovens e velhos, sugerindo que o viço e a força da juventude e a sabedoria e a fragilidade da velhice são contemporâneos no atemporal da ancestralidade, Ana reforça sua participação com Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo, entre outras, naquilo que chamarei de "imaginação diaspórica", noção que parte do conceito de "imaginação africana", proposta pelo crítico nigeriano Francis Abiola Irele.
Embora POEROTISA não seja marcada por uma linguagem que se diria "das ruas", em geral, n os textos que ressoam mais "nós", do que "eu", a poeta, numa firme batida de pé, se apropria de ditos/ditados populares, registrando-os, torcendo-os e os subtraindo do discurso ordinário, quase ingênuo ou mal-intencionado em que se encontrariam, se não enraizados nesses poemas. Destaco?
"Vocês que são brancos/que se entendam"
"Deus escreve quieto por linhas surdas"
"O pão/Não tem/O circo/Tem que pagar para entrar!"
"Santa foi a puta que me pariu!"
Em POEROTISA não se dá oposição entre política, feminismo (ou mulherismo), antirracismo e poeisa, porque o erótico (e não apenas o conjunto de poemas integrantes da sessão Fruto, onde pareceria mais evidente para os menos avisados) e aqui parafraseio a Audre Lorde, oferece um manancial de força revigorante e provocativa à poeta que não teme sua revelação, nem sucumbe à crença de que a "opinião rimada" basta. O erótico carrega a divindade na boca e se constitui em fonte e explosão nos poemas de Dan/Ana.
POEROTISA é leito em que Ana se deita e do qual levanta sem a máscara de silenciamento dos que nos quiseram ANAstácias, conforme assinala Grada Kilomba, referida indiretamente pela poeta em "Mimimi". Ana come as palavras que nos foram frutos proibidos (e não estou me referindo à bílblia0 e as cospe poemas.
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