terça-feira, 17 de novembro de 2015

"...QUANTAS ANÔNIMAS GUERREIRAS BRASILEIRAS!"  (Oliveira Silveira)

   Na minha busca por uma identidade afro-brasileira, encontro nos escritos de Lélia Gonzales a prova de que existe, sim, uma intelectual negra brasileira que pensa em nós como mulheres e nos constitui como elemento central e fundador de um país chamado Brasil. Lélia, uma intelectual, ativista aguerrida na luta antirracista e antissexista, teve uma ascendência social e intelectual que não a impediu de questionar o pensamento ocidental e ressignificar o feminismo, chamando a atenção para os fatores raça, gênero e classe.
  Nos anos 80, ela ressaltava que dentro do Movimento Negro era necessário abrir um debate para uma maior visibilidade das mulheres negras como sujeitos políticos. A verdadeira emancipação começaria a partir do momento em que nós, mulheres falássemos por nós mesmas e não fôssemos tratadas como objeto de estudo: "Nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim determina a lógica da dominação. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados, assumimos nossa própria fala, ou seja, o lixo vai falar. E numa boa!"
   Num texto publicado no Jornal Mulherio, ela faz a provocação: "E a trabalhadora negra cumé que fica?" Estamos nos anos 80 e a condição das mulheres negras como trabalhadoras domésticas ainda não está contemplada pelas leis trabalhistas criadas em 1930 por Getúlio Vargas. Nos anos 40, o próprio Movimento Negro cria a Associação das Empregadas Domésticas para garantir algumas condições mínimas de saúde, e dessa forma começa a "empoderar" algumas delas com cursos de datilografia e secretariado. Em 2013, século XXI, a PEC das Domésticas traz de volta todo o "chorume" da "casa-grande": não querem assinar a carteira, nem pagar os direitos trabalhistas para "aquela que já faz parte da família"...Não esqueçamos que muitas até hoje não assinam sua carteira porque não sabem ler...
   Lélia faz uma reflexão sobre a estrutura de trabalho no Brasil construída em cima da escravidão: "a trabalhadora rural de hoje não difere muito da escrava do eito de ontem, a empregada doméstica não é muito diferente da "mucama" de ontem, o mesmo poderia dizer-se da vendedora ambulante, da "joaninha", da servente ou trocadora de ônibus e "escrava de ganho de ontem".
   Ela também fala do espaço privado e o espaço público que a negra ocupa: dentro de casa, o quartinho da empregada ( reprodução da senzala) e fora de casa a "mulata ' do Carnaval: " as formas particulares de violência, abuso e assédio sexual que vêm desde a Colônia quando os homens iniciavam sua vida sexual com a negra e com a branca fazia sexo apenas para fins reprodutivos.
  É justo nesse ponto da análise, que Lélia faz o que é chamado em filosofia de "uma dobra deleuziana", ou seja, ela contorna essa análise de uma perspectiva chamada "resistência passiva". Sim, nós, negras, resistimos aparentemente pela "passividade", mas dessa forma, imprimimos uma identidade cultural no Brasil que está no nosso DNA até os dias de hoje. Somos filhas e netas de Dandara, aquela que preferiu se matar a ser escravizada de novo. Somos quilombolas e herdamos dessa resistência, a sagacidade de um povo: "Enquanto escrava do campo (café e cana) ela estimulou a revolta, a fuga e a formação de quilombos. Ela lutou contra as expedições militares, educou os filhos contra a escravidão, a colônia e o racismo."
   Pensando em cultura como um elemento de conscientização política e a valorização de uma identidade negra, ela chega num ponto crucial: "Enquanto mucama ou ama-de leite, mantinha um contato direto com os senhores, reproduzindo a ideologia senhoral e "fazia a cabeça do senhor" numa resistência passiva e profunda. Ela fazia o papel de "Mãe Preta" e nessa profundidade ela criou uma espécie de "romance familiar" cuja importância foi vital na formação dos valores e crenças do nosso povo. Ela, conscientemente ou não, passou "as categorias" das culturas negro-africanas de que era representante. Ela africanizou o Português, criando assim o "Pretuguês".
   A atualidade do pensamento de Lélia me emociona e me toca profundamente enquanto minhas irmãs marcham em rumo à Brasilía, na Primeira Marcha das Mulheres Negras, em 18 de novembro de 2015. Transcrevo aqui uma realidade da qual faço parte: as duplas e triplas jornadas às quais as mulheres negras conhecem tão bem e que nos diferem de nossas irmãs brancas. O Feminismo AfroLatinoAmericano ou a Amefricanidade trata sobre as mulheres na diáspora africana na América Latina. Nosso Feminismo Negro é o "Womanism" de que falava Alice Walker, é o "Mulherismo, de mulheridade. Mulheridade é a construção do sexo junto com o parceiro ou parceira: "Eu sou mulher junto com o outro, é o sexo além do orgasmo, é o devir, o vir a ser. É a solidariedade.
   "Hoje enquanto mãe e companheira continua sozinha a batalhar o sustento dos filhos, enquanto o companheiro, objeto da violência policial, está morto ou na prisão, ou então desempregado e vítima do alcoolismo. Em matéria de dupla jornada ela é "expert" (acorda mais cedo, deixa a comida pronta, lava roupas, leva o filho ao médico). ela sempre dá um jeito de ir o Samba (exercitar o lúdico). Curte um Carnaval e é protagonista nessa festa. Vai ao terreiro ou centro exercer a fé nos Orixás. Tem medo de barata, mas não tem medo da polícia e tem consciência política."
   Essas são as anônimas guerreiras brasileiras, grupo do qual faço parte e tenho muito orgulho de pertencer!
Ana Dos Santos
  

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