sábado, 17 de dezembro de 2022

Lei do Ventre Livre não foi motivada por direitos humanos (entrevista que concedi ao portal Terra)

 

Lei do Ventre Livre não foi motivada por direitos humanos

Lei que previa a liberdade de bebês nascidos de mulheres escravizadas foi pensada por escravocatas a partir de aspectos econômicos

Jamile Santana - 28 de setembro de 2022 (portal Terra)
Texto completa 151 anos com impactos profundos na população negra

“Mulheres abortavam seus fetos, minavam seus afetos, para a família não morrer em vida” , o verso do poema “Ventre Livre”, escritora e Mestra em Literatura, especialista em Literatura e Cultura Afro-Brasileira, Ana dos Santos, publicado no livro “Raízes - Brazilian Women Poets in Translation” retrata um pouco do impacto da Lei de Ventre Livre, na vida de mulheres escravizadas. A lei previa que de 28 de setembro de 1871 em diante, as mulheres escravizadas dariam à luz apenas a bebês livres. Hoje, o texto completa 151 anos, com impactos profundos na população negra.
Mulher e criança escravizados

A proposta foi escrita por Visconde de Rio Branco e passou por aprovação do legislativo federal brasileiro, com embates e sob pressão. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, escritor do livro " A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial", a Lei do Ventre Livre, na época recebeu 61 votos a favor e 35 contra. O texto previa que a partir de 28 de setembro de 1871, não nasceria mais bebês escravizados no Brasil, na época um dos países que mais explorava mão de obra negra no mundo. As crianças deveriam permanecer junto de suas mães, nas casas dos escravocratas, até completarem oito anos de idade. Mas o que parecia uma libertação, dava mais tempo para que a mão de obra infantil fosse explorada. 
“É uma lógica muito contraditória. Você tem uma pessoa escravizada e determina que o bebê que nasce desse corpo é livre. Mas a gente sabe que um bebê, uma criança, precisa da mãe para sobreviver, pra se alimentar. Antes da lei, quando uma mulher negra dava a luz, essa criança era retirada dela, enquanto ela tinha que amamentar os filhos das sinhás. Eram chamadas de amas de leite. Então o seu próprio filho ficava sem alimentação. A lei, já nasce dentro desse contexto absurdo”, contextualiza. A Lei do Ventre Livre não teve o resultado prático que seria o mais óbvio: a liberdade dos bebês. Quem nasceu em 1871 só se tornaria efetivamente livre em 1892, aos 21 anos de idade.
Texto da Lei do Ventre Livre, que passou a vigorar em 28 de setembro de 1871

Ainda de acordo com a especialista, os documentos históricos mostram que  a discussão sobre a liberdade das crianças só entrou em pauta por questões econômicas. “Não foi a preocupação com o direito humano, dignidade e assistência que motivou a criação dessa lei. Foi uma questão econômica”. 
De acordo com os papéis históricos do Arquivo do Senado, organizações de fazendeiros, como o Clube da Lavoura, enviaram aos senadores 11 representações contra o projeto da Lei do Ventre Livre. Algumas apontavam o risco de caos social e econômico no Império. As petições somaram 2 mil assinaturas. Para tentar corromper sistema escravagista, muitas mulheres escravizadas praticavam o aborto. “As mulheres escravizadas provocavam aborto porque não queriam ter um filho fruto de uma violência ou não queriam colocar um filho para ser explorado pelo sistema. Era uma forma de resistência à escravidão. No poema eu destaco isso, as crianças cresceram, reproduziram o trabalho escravo vivido pela mãe. Há documentos históricos que mostram que as crianças negras eram um animal de estimação dos filhos da Casa Grande. Não tinham direito a uma vida digna e plena. As leis abolicionistas são uma farsa nesse sentido, porque não tem o povo negro como ponto central”. 

O impacto da lei reverbera até hoje, segundo Iamara Viana, historiadora especialista na História da Escravidão no Brasil. “Do ponto de vista teórico e conceitual, está extinta. foi extinta, com a lei de 13 de maio de 1888, devido a movimentos populares negros, libertos e também de abolicionistas. Mas o que temos hoje são relações trabalhistas que seguem modelos similares de escravização. Hoje temos leis trabalhistas, mas se elas não são cumpridas, temos situações similares à escravidão”.






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