sábado, 19 de outubro de 2019


A MULHER NAS ASAS DA LITERATURA – RESISTÊNCIA E POÉTICA


    Quando criança me tornei leitora ao mesmo tempo em que era alfabetizada na escola. Em casa, através das mãos de minha mãe, uma professora nascida aqui em Alegrete, recebi livros infantis que me levaram a voar nas asas da imaginação. Com o “Pequeno Príncipe”, viajei além-terra e além-mar para outros planetas e galáxias. Através de minha tia, outra professora também nascida aqui, conheci o poema "Meus 8 anos” de Casimiro de Abreu, que foi recitado diversas vezes, para por mim ser memorizado e dito em meu aniversário! Foi das mãos dessa tia que também conheci Mário Quintana, o poeta “passarinho” que também nasceu nesse chão. Por isso hoje, tenho que evocar essas memórias, porque nas voltas que o mundo dá, peguei carona nas asas da Literatura e cheguei em Alegrete, cidade da minha árvore genealógica, de meus ancestrais. Mulheres que me fizeram voar no mundo da imaginação e que me permitiram aprender a voar sozinha nas asas da Poesia!
    Como uma escritora, no caso, uma poetisa, eu proponho rotas de voo para meus leitores. Não por acaso, essas rotas me levam à África, continente de onde vieram meus ancestrais e que fizeram morada aqui em Alegrete. Tanto por parte de mãe, como parte de pai, sou afrodescendente. Comecei essa pesquisa como Trabalho de Conclusão no meu curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Produzi um documentário sobre minha avó, Martina Freitas, uma matriarca na família e uma contadora de histórias. Mais uma vez, uma mulher que me levou a voar nas asas da Literatura Oral. Uma mulher de resistência, que sempre valorizou o estudo na vida de suas filhas. Uma mulher que participou da primeira eleição onde as mulheres podiam votar em Alegrete. Uma mulher que viveu numa cidade onde durante muito tempo tinha um lado da calçada para brancos e outro para negros. Uma mulher de Resistência.

     A Poética de uma mulher negra é uma Poética de Resistência. Para hoje eu poder escrever o que penso e sinto, meus antepassados tiveram que atravessar o Atlântico trazidos à força de África e contra sua vontade. Passaram horrores nas mãos dos senhores de escravos e capitães do mato. Muitos se calaram, para poder sobreviver. Mas eu, eu não me calo mais! Eu aprendi a ler e escrever. Tomei gosto pela leitura. Descobri heróis e heroínas afro-brasileiros que lutaram pela liberdade do meu povo. Eu também tenho um sonho, como o pastor Martin Luther King. Um sonho de igualdade e respeito. Meu discurso é de paz, mas tenho consciência que no Brasil, mulheres negras morrem mais do que o restante da população. Para cada mulher negra que morre por causa do machismo e do racismo, é uma palavra difícil que coloco na minha Poética. Minha escrita é de Resistência, porque para cada pedaço de carne negra que tomba no chão, uma parte de mim morre junto. Em cada palavra que escrevo, eu luto contra a morte. Para uma mulher negra, no Brasil, estar viva já é um ato de Resistência. Contrariando as estatísticas, eu sou uma poetisa negra e em cada verso que escrevo eu dou vida e ressuscito aquelas que vieram antes de mim. Eu quero eternizar todas as mulheres negras na minha Poesia e quero que elas voem para onde bem desejarem, pois a Poesia é asa e permite que sejamos livres de toda opressão e permite que nós possamos sonhar, desejar e amar!

   O meu processo de escrita é orgânico. Eu comecei a escrever fazendo diários, algo que faço desde sempre. E comecei escrevendo poemas amorosos, como a maioria das pessoas faz. Mas, eu já tinha uma visão de sujeito amoroso que não se encaixava em relacionamentos padrões. Quando comecei a escrever Poesia Erótica, isso ficou mais claro para mim: “Mulher não deve falar de sexo! Onde já se viu? Mulher com desejo sexual?” Não é por acaso que esses poemas ainda incomodam os leitores: uma mulher que deixa de ser o objeto do desejo para ser o sujeito do desejo ainda é tabu em pleno século XXI. Mas, para mim, falar do meu corpo, do meu desejo, das minhas dores e paixões é fundamental! Eu resisto e persisto nessa Poética. Assim também posso encorajar as leitoras a dizerem o que sentem. E mulher, como diz a cantora Elza Soares, mulher sofre quietinho, calada e não! Mulher tem que gritar, tem que dizer, tem que botar pra f...

    Quanto à dedicação, tempo e dificuldades de escrever, eu posso falar sobre o gênero Poesia, que é o meu ofício. Eu sou professora, mãe e dona de casa, e isso já responde um pouco essa questão do tempo. Não sei se eu gostaria de ter mais tempo para escrever, pois como dizia Clarice Lispector, viver já me ocupa muito tempo. Mas acho que a Poesia encaixa direitinho na minha vida, porque tenho fases de escrever mais e outras de não escrever nada. No entanto tenho poemas de 20 anos atrás, que só agora estão prontos e ás vezes eu gosto de reescrever alguns. Trago aqui uma fala que gosto muito da poetisa afro-americana Audre Lorde:

"Recentemente, um coletivo de mulheres editoras
decidiu publicar uma edição só de prosa, alegando que
a poesia era uma forma artística menos “rigorosa” ou
“séria”. Mesmo a forma que nossa criatividade toma é
muitas vezes uma questão de classe. De todas as formas
de arte, poesia é a mais econômica. Ela é a que é mais
secreta, a que requer menos trabalho físico, menos
materiais, e a que pode ser feita entre turnos, na copa
do hospital, no metrô, e em retalhos de sobra de papel.
Nos últimos dois anos, escrevendo uma novela com o
orçamento apertado, eu pude compreender as enormes
diferenças nas demandas materiais entre poesia e prosa.
Na reivindicação de nossa literatura, a poesia tem sido
a voz principal das pessoas pobres, da classe operária e
das mulheres de Cor. Um teto próprio pode ser uma
condição à escrita da prosa, mas também são resmas
de papel, uma máquina de escrever e tempo de sobra"


   Eu entrei no curso de Letras nos anos 90 na UFRGS. É um curso majoritariamente de alunas, com poucos alunos. Mas, entre 150 alunos, só tinha eu e mais dois alunos negros. A universidade foi o lugar onde mais sofri racismo na vida. Eu tive que trancar o curso porque não aguentei a rotina de humilhação e exclusão partidas dos meus colegas e professores. No meu caso, a questão de classe social também contou muito pois eu estagiava na faculdade durante todo o curso como bolsista e monitora. Depois de um tempo, voltei e me formei.

   Quanto ao machismo, eu vou te relatar o que percebi e que também foi discutido recentemente (maio 2017) num encontro sobre Letras e Feminismo no FestiPoa Literária com a presença da escritora e professora Heloísa Buarque de Holanda.  O machismo intelectual está presente nas bibliografias dos cursos. Os estudantes de Letras não leem escritoras, não leem mulheres! Nossa visão de mundo é masculina e branca.
    Também trago aqui uma fala da escritora Lélia Almeida na última Feira do Livro de Porto Alegre: “Os homens não leem e não escrevem sobre outros pares femininos, como irmãs por exemplo. “Eles contam sobre Antígona, Anna Karenina, Madame Bovary, todas fazem parte de romances famosos, mulheres que se tornam influentes e morrem de castigo. Uma se atira nos trilhos e a outra toma veneno. Terminam loucas, senis, doentes ou mortas.”

    A proposta de Lélia é que os leitores conheçam mais sobre as mães e as filhas na literatura de autoria feminina. A inserção neste universo serve para compreender, “ao contrário de premissas patriarcais, que os afetos entre as mulheres são de central importância, empoderadores de todas as personagens envolvidas”. Para ela, o caminho fundamental para compreender historicamente o apagamento desta relação é o fato das mulheres somente alcançarem a felicidade ao se casarem com os homens. Desta forma, as figuras centrais da literatura – e da vida real – acabam sendo, sobretudo, os pais, os irmãos, os amigos e os amantes.

   Quanto ao racismo, eu voltei agora para a Universidade e me sinto mais à vontade pela quantidade alunos negros que entraram pelas cotas raciais. Agora não estou sozinha, nem isolada e posso te garantir que os alunos cotistas são os mais estudiosos e dedicados. 

    Sobre o mercado editorial, eu posso te dizer que ainda temos que ocupar mais espaço. Eu publiquei meu primeiro livro através de um concurso e uma premiação. Tenho participado de diversos outros concursos literários e publicado em Antologias junto com outras poetisas e poetas. Tenho uma pesquisa sobre escritoras negras e ao procurar suas obras me deparei com as publicações já esgotadas nas editoras ou esgotadas com a autora sem previsão de novas publicações. Numa mesa na Feira do Livro de 2015, uma editora nos relatou que as livrarias não sabem vender Literatura Negra. Ou os livros ficam escondidos, ou não se encaixam em nenhum setor de gênero ou temática. A Lélia Almeida também fala sobre as premiações são incipientes e a crítica literária que é inexistente. Este ano surgiu um grupo chamado Mulherio das Letras que vai se reunir em Outubro na cidade de João Pessoa e já conta com 4.300 escritoras que vão se reunir para achar maneiras de entrar no mercado editorial, nos concursos e premiações literários.
    Os rótulos e estereótipos em relação a escrita de autoria feminina, são bem mais antigos que a gente imagina. A escritora inglesa Jane Austen, antes de assinar seus trabalhos, usava um pseudônimo masculino. Depois que começou a fazer sucesso, assumiu que era uma escritora. A nossa Clarice Lispector teve uma péssima recepção ao surgir como escritora: era acusada de ser muito intimista, “que sua escrita era coisa de mulherzinha” preocupada com o mundo interior, com os sentimentos e questões filosóficas sobre a vida e a morte. Eu penso que para um homem escrever, ele tem a liberdade de escolher o tema que bem o prover. Não existem restrições, nem exigências. Por que nós mulheres temos que ter essa exigência? Eu, como mulher negra, falo sobre machismo e racismo porque diariamente eu enfrento esses comportamentos na nossa sociedade, e eu não sou militante. Mas eu também falo de amor, maternidade, alegria, prazer. Eu sou um ser humano, eu sou uma artista, minha matéria prima é a vida. Talvez, se a sociedade avançar tão rápida como a minha urgência de igualdade, eu posso ter outros temas que me toquem.
    Literatura Feminina, sim, porque é escrita por mulheres, é uma voz feminina. Assim como Literatura Negra sim, porque é escrita por autores negros, é uma voz negra. Veja, que somos grupos excluídos de um cânone literário branco e masculino. Onde está a voz dos indígenas? Onde está a voz dos homossexuais? Onde está a voz da periferia? A Literatura só reflete o que a nossa sociedade espelha: uma sociedade desigual entre homens e mulheres. Toda e qualquer mulher que escreve, mesmo que não queria ser feminista, já está fazendo um papel revolucionário pois vai servir de inspiração para as nossas meninas e as nossas jovens.
   A 14ª edição da FLIP – Festa Literária de Internacional de Paraty estava homenageando as Mulheres escritoras. Mas, nenhuma mulher negra, num país onde mais da metade da população é negra. Alegaram que não conheciam ou que não encontraram autores disponíveis. As escritoras negras se reuniram e escreveram uma carta protesto.

   Como resposta e essa reivindicação, esse ano de 2017 a FLIP vai homenagear o escritor Lima Barreto e terá como convidada a escritora Conceição Evaristo, referência para nós mulheres negras que escrevem sobre suas “escrevivências”. Hoje aqui na Feira de Alegrete, me sinto à vontade e me sinto representada por todos os escritores negros aqui presentes. Isso é um avanço e tanto na Literatura! Parabéns a equipe organizadora do evento!
Ana Dos Santos
(Mesa de abertura da 38 ª Feira do Livro de Alegrete/julho de 2017)