A MULHER NAS ASAS DA
LITERATURA – RESISTÊNCIA E POÉTICA
Quando criança me tornei leitora ao mesmo
tempo em que era alfabetizada na escola. Em casa, através das mãos de minha
mãe, uma professora nascida aqui em Alegrete, recebi livros infantis que me
levaram a voar nas asas da imaginação. Com o “Pequeno Príncipe”, viajei
além-terra e além-mar para outros planetas e galáxias. Através de minha tia,
outra professora também nascida aqui, conheci o poema "Meus 8 anos” de Casimiro de Abreu, que
foi recitado diversas vezes, para por mim ser memorizado e dito em meu
aniversário! Foi das mãos dessa tia que também conheci Mário Quintana, o poeta
“passarinho” que também nasceu nesse chão. Por isso hoje, tenho que evocar
essas memórias, porque nas voltas que o mundo dá, peguei carona nas asas da
Literatura e cheguei em Alegrete, cidade da minha árvore genealógica, de meus
ancestrais. Mulheres que me fizeram voar no mundo da imaginação e que me
permitiram aprender a voar sozinha nas asas da Poesia!
Como
uma escritora, no caso, uma poetisa, eu proponho rotas de voo para meus
leitores. Não por acaso, essas rotas me levam à África, continente de onde
vieram meus ancestrais e que fizeram morada aqui em Alegrete. Tanto por parte
de mãe, como parte de pai, sou afrodescendente. Comecei essa pesquisa como
Trabalho de Conclusão no meu curso de Letras na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Produzi um documentário sobre minha avó, Martina Freitas, uma
matriarca na família e uma contadora de histórias. Mais uma vez, uma mulher que
me levou a voar nas asas da Literatura Oral. Uma mulher de resistência, que
sempre valorizou o estudo na vida de suas filhas. Uma mulher que participou da
primeira eleição onde as mulheres podiam votar em Alegrete. Uma mulher que
viveu numa cidade onde durante muito tempo tinha um lado da calçada para
brancos e outro para negros. Uma mulher de Resistência.
A Poética de uma mulher negra é uma
Poética de Resistência. Para hoje eu poder escrever o que penso e sinto, meus
antepassados tiveram que atravessar o Atlântico trazidos à força de África e
contra sua vontade. Passaram horrores nas mãos dos senhores de escravos e
capitães do mato. Muitos se calaram, para poder sobreviver. Mas eu, eu não me
calo mais! Eu aprendi a ler e escrever. Tomei gosto pela leitura. Descobri
heróis e heroínas afro-brasileiros que lutaram pela liberdade do meu povo. Eu
também tenho um sonho, como o pastor Martin Luther King. Um sonho de igualdade
e respeito. Meu discurso é de paz, mas tenho consciência que no Brasil,
mulheres negras morrem mais do que o restante da população. Para cada mulher
negra que morre por causa do machismo e do racismo, é uma palavra difícil que
coloco na minha Poética. Minha escrita é de Resistência, porque para cada
pedaço de carne negra que tomba no chão, uma parte de mim morre junto. Em cada
palavra que escrevo, eu luto contra a morte. Para uma mulher negra, no Brasil,
estar viva já é um ato de Resistência. Contrariando as estatísticas, eu sou uma
poetisa negra e em cada verso que escrevo eu dou vida e ressuscito aquelas que
vieram antes de mim. Eu quero eternizar todas as mulheres negras na minha Poesia
e quero que elas voem para onde bem desejarem, pois a Poesia é asa e permite
que sejamos livres de toda opressão e permite que nós possamos sonhar, desejar
e amar!
O
meu processo de escrita é orgânico. Eu comecei a escrever fazendo diários, algo
que faço desde sempre. E comecei escrevendo poemas amorosos, como a maioria das
pessoas faz. Mas, eu já tinha uma visão de sujeito amoroso que não se encaixava
em relacionamentos padrões. Quando comecei a escrever Poesia Erótica, isso
ficou mais claro para mim: “Mulher não deve falar de sexo! Onde já se viu?
Mulher com desejo sexual?” Não é por acaso que esses poemas ainda incomodam os
leitores: uma mulher que deixa de ser o objeto do desejo para ser o sujeito do
desejo ainda é tabu em pleno século XXI. Mas, para mim, falar do meu corpo, do
meu desejo, das minhas dores e paixões é fundamental! Eu resisto e persisto
nessa Poética. Assim também posso encorajar as leitoras a dizerem o que sentem.
E mulher, como diz a cantora Elza Soares, mulher sofre quietinho, calada e não!
Mulher tem que gritar, tem que dizer, tem que botar pra f...
Quanto à dedicação, tempo e dificuldades
de escrever, eu posso falar sobre o gênero Poesia, que é o meu ofício. Eu sou
professora, mãe e dona de casa, e isso já responde um pouco essa questão do
tempo. Não sei se eu gostaria de ter mais tempo para escrever, pois como dizia
Clarice Lispector, viver já me ocupa muito tempo. Mas acho que a Poesia encaixa
direitinho na minha vida, porque tenho fases de escrever mais e outras de não
escrever nada. No entanto tenho poemas de 20 anos atrás, que só agora estão
prontos e ás vezes eu gosto de reescrever alguns. Trago aqui uma fala que gosto
muito da poetisa afro-americana Audre Lorde:
"Recentemente, um coletivo de
mulheres editoras
decidiu publicar uma edição só de prosa, alegando que
a poesia era uma forma artística menos “rigorosa” ou
“séria”. Mesmo a forma que nossa criatividade toma
é
muitas vezes uma questão de classe. De todas as
formas
de arte, poesia é a mais econômica. Ela é a que é
mais
secreta, a que requer menos trabalho físico, menos
materiais, e a que pode ser feita entre turnos, na
copa
do hospital, no metrô, e em retalhos de sobra de
papel.
Nos últimos dois anos, escrevendo uma novela com o
orçamento apertado, eu pude compreender as enormes
diferenças nas demandas materiais entre poesia e
prosa.
Na reivindicação de nossa literatura, a poesia tem
sido
a voz principal das pessoas pobres, da classe
operária e
das mulheres de Cor. Um teto próprio pode ser uma
condição à escrita da prosa, mas também são resmas
de papel, uma máquina de escrever e tempo de
sobra"
Eu
entrei no curso de Letras nos anos 90 na UFRGS. É um curso majoritariamente de
alunas, com poucos alunos. Mas, entre 150 alunos, só tinha eu e mais dois
alunos negros. A universidade foi o lugar onde mais sofri racismo na vida. Eu
tive que trancar o curso porque não aguentei a rotina de humilhação e exclusão
partidas dos meus colegas e professores. No meu caso, a questão de classe
social também contou muito pois eu estagiava na faculdade durante todo o curso
como bolsista e monitora. Depois de um tempo, voltei e me formei.
Quanto ao machismo, eu vou te relatar o que
percebi e que também foi discutido recentemente (maio 2017) num encontro sobre
Letras e Feminismo no FestiPoa Literária com a presença da escritora e
professora Heloísa Buarque de Holanda. O
machismo intelectual está presente nas bibliografias dos cursos. Os estudantes
de Letras não leem escritoras, não leem mulheres! Nossa visão de mundo é
masculina e branca.
Também trago aqui uma fala da escritora Lélia
Almeida na última Feira do Livro de Porto Alegre: “Os homens não leem e não
escrevem sobre outros pares femininos, como irmãs por exemplo. “Eles contam
sobre Antígona, Anna Karenina, Madame Bovary, todas fazem parte de romances
famosos, mulheres que se tornam influentes e morrem de castigo. Uma se atira
nos trilhos e a outra toma veneno. Terminam loucas, senis, doentes ou mortas.”
A
proposta de Lélia é que os leitores conheçam mais sobre as mães e as filhas na
literatura de autoria feminina. A inserção neste universo serve para
compreender, “ao contrário de premissas patriarcais, que os afetos entre as
mulheres são de central importância, empoderadores de todas as personagens
envolvidas”. Para ela, o caminho fundamental para compreender historicamente o
apagamento desta relação é o fato das mulheres somente alcançarem a felicidade
ao se casarem com os homens. Desta forma, as figuras centrais da literatura – e
da vida real – acabam sendo, sobretudo, os pais, os irmãos, os amigos e os
amantes.
Quanto
ao racismo, eu voltei agora para a Universidade e me sinto mais à vontade pela
quantidade alunos negros que entraram pelas cotas raciais. Agora não estou
sozinha, nem isolada e posso te garantir que os alunos cotistas são os mais
estudiosos e dedicados.
Sobre o mercado editorial, eu posso te dizer que
ainda temos que ocupar mais espaço. Eu publiquei meu primeiro livro através de
um concurso e uma premiação. Tenho participado de diversos outros concursos
literários e publicado em Antologias junto com outras poetisas e poetas. Tenho
uma pesquisa sobre escritoras negras e ao procurar suas obras me deparei com as
publicações já esgotadas nas editoras ou esgotadas com a autora sem previsão de
novas publicações. Numa mesa na Feira do Livro de 2015, uma editora nos relatou
que as livrarias não sabem vender Literatura Negra. Ou os livros ficam
escondidos, ou não se encaixam em nenhum setor de gênero ou temática. A Lélia
Almeida também fala sobre as premiações são incipientes e a crítica literária
que é inexistente. Este ano surgiu um grupo chamado Mulherio das Letras que vai
se reunir em Outubro na cidade de João Pessoa e já conta com 4.300 escritoras
que vão se reunir para achar maneiras de entrar no mercado editorial, nos
concursos e premiações literários.
Os
rótulos e estereótipos em relação a escrita de autoria feminina, são bem mais
antigos que a gente imagina. A escritora inglesa Jane Austen, antes de assinar
seus trabalhos, usava um pseudônimo masculino. Depois que começou a fazer
sucesso, assumiu que era uma escritora. A nossa Clarice Lispector teve uma
péssima recepção ao surgir como escritora: era acusada de ser muito intimista,
“que sua escrita era coisa de mulherzinha” preocupada com o mundo interior, com
os sentimentos e questões filosóficas sobre a vida e a morte. Eu penso que para
um homem escrever, ele tem a liberdade de escolher o tema que bem o prover.
Não existem restrições, nem exigências. Por que nós mulheres temos que ter essa
exigência? Eu, como mulher negra, falo sobre machismo e racismo porque diariamente
eu enfrento esses comportamentos na nossa sociedade, e eu não sou militante.
Mas eu também falo de amor, maternidade, alegria, prazer. Eu sou um ser humano,
eu sou uma artista, minha matéria prima é a vida. Talvez, se a sociedade
avançar tão rápida como a minha urgência de igualdade, eu posso ter outros
temas que me toquem.
Literatura
Feminina, sim, porque é escrita por mulheres, é uma voz feminina. Assim como
Literatura Negra sim, porque é escrita por autores negros, é uma voz negra.
Veja, que somos grupos excluídos de um cânone literário branco e masculino.
Onde está a voz dos indígenas? Onde está a voz dos homossexuais? Onde está a
voz da periferia? A Literatura só reflete o que a nossa sociedade espelha: uma
sociedade desigual entre homens e mulheres. Toda e qualquer mulher que escreve,
mesmo que não queria ser feminista, já está fazendo um papel revolucionário
pois vai servir de inspiração para as nossas meninas e as nossas jovens.
A
14ª edição da FLIP – Festa Literária de Internacional de Paraty estava
homenageando as Mulheres escritoras. Mas, nenhuma mulher negra, num país onde
mais da metade da população é negra. Alegaram que não conheciam ou que não
encontraram autores disponíveis. As escritoras negras se reuniram e escreveram
uma carta protesto.
Como
resposta e essa reivindicação, esse ano de 2017 a FLIP vai homenagear o
escritor Lima Barreto e terá como convidada a escritora Conceição Evaristo,
referência para nós mulheres negras que escrevem sobre suas “escrevivências”. Hoje
aqui na Feira de Alegrete, me sinto à vontade e me sinto representada por todos
os escritores negros aqui presentes. Isso é um avanço e tanto na Literatura!
Parabéns a equipe organizadora do evento!
Ana Dos Santos
(Mesa de abertura da 38 ª Feira do Livro de Alegrete/julho de 2017)