Com o objetivo de ampliar as experiências de leitura, o JU produz, desde 2018, uma série de reportagens em que especialistas destacam aspectos e fazem análises interpretativas das obras indicadas pela Universidade.
Arte: Mitti Mendonça (instagram: @mao.negra)
Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Panda, Molenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém.
-Trecho do livro Ponciá Vicêncio
É o rio que dá início à história de Ponciá Vicêncio – nome da obra, mas também da protagonista. É às margens da água que o livro de estreia de Conceição Evaristo nos apresenta Ponciá. Ainda criança e sonhadora, ela enxerga o Angorô – arco-íris, em língua bantu – e teme: viraria menino se atravessasse o rio por debaixo das sete cores no céu? Atravessa e logo percebe que o corpo continuava o mesmo. Nem o Angorô, tampouco o rio, haviam mudado quem Ponciá era e quem viria a ser. Publicado pela primeira vez em 2003, o romance, uma das novas Leituras Obrigatórias do Vestibular da UFRGS, convida o leitor a acompanhar o vir a ser de Ponciá Vicêncio e a navegar junto à protagonista por suas memórias e as de seus ancestrais.
O livro narra, em um constante vai e vem no tempo, desde a infância até a fase adulta da vida de Ponciá. Filha de Maria e neta do Velho Vicêncio, a protagonista nascera sob a Lei do Ventre Livre. No entanto, já de início, se entende que ainda há a “terra dos brancos” e a “terra dos negros”. E, de forma inaugural e subversiva na história da literatura brasileira, estamos a olhar a partir da terra dos negros. A partir das (escre)vivências de uma mulher negra.
Conceição Evaristo faz uma inversão de pontos de vista em Ponciá Vicêncio. “Ela não diz que a protagonista é negra, mas diz que os brancos existem. Inverte o lugar porque sempre é o negro que é uma invenção do branco. Em Ponciá, é a história do negro contada pelo negro. Evaristo subverte pelas palavras. Conta o que não foi contado na literatura brasileira”, aponta Ana Paula dos Santos, mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS.
Partir e retornar
Um dos momentos mais importantes do livro e que marca a passagem da protagonista para a vida adulta é sua ida à cidade grande. Partindo do lugar onde nasceu, Ponciá pensou estar indo ao encontro de uma vida melhor, diferente da falsa abolição do campo. Encontrou, porém, uma cidade hostil. Chegou com os desejos que tinha desde menina e, com o tempo, os viu esvaziarem. Foi sentindo um permanente vazio.
Para Ana Paula, a cidade faz Ponciá parar de sonhar e a leva de volta ao passado e à família, à procura dos pedaços de si que ficaram para trás. A mestranda lembra a semelhança com a protagonista de Clarice Lispector em A Hora da Estrela.
“Ponciá faz também o percurso de Macabéa. Elas saem do interior, vão para a cidade grande. Macabéa, como Ponciá, é ingênua, pura e sonhadora. Mas chega à cidade e encontra esse lugar que não é hospitaleiro. E para Ponciá será ainda pior, porque ela é uma mulher negra. Na sociedade já está determinado até onde a pessoa negra pode ir.”
Ana Paula dos Santos
Nesse encontrar-se na cidade, Elen Karla Sousa da Silva, doutoranda no PPG em Letras da UFRGS, destaca a importância de outros personagens, especialmente o avô. Apesar de não terem dividido o mesmo espaço e tempo – Ponciá era uma criança de colo quando ele faleceu –, os dois guardavam muitas semelhanças nos gestos, nas ações e até mesmo nos pensamentos. Essa incorporação do avô, aponta Elen, é a incorporação da própria ancestralidade.
“Ponciá herdou do avô esse sofrimento de uma condição de escravizado, por mais que ela não fosse. Herdou essa dor profunda, que começa no sobrenome. Vicêncio era o nome dos senhores de escravos, era um nome que não era deles.” A doutoranda sinaliza também que a personagem não buscava resgatar a própria identidade, porque, segundo ela, ninguém resgata uma identidade perdida.
“O que ela estava tentando era reconstruir a identidade de alguma forma. Ela não se reconhecia e ficava entre idas e vindas em busca de se reencontrar, de reescrever essa história.”
Elen Karla Sousa da Silva
Escreviver uma memória individual e coletiva
Ambas pesquisadoras acreditam que, apesar de Ponciá Vicêncio revelar uma série de ausências marcadas por um universo de racismo e sexismo, a obra é desenhada com ternura e afeto por Conceição Evaristo. A partir de um realismo poético, a autora estreia em Ponciá o método que a acompanhará em todas as obras seguintes: a escrevivência. A autora leva às letras experiências da própria infância, de sua vivência enquanto mulher negra. Apesar de o livro não ser autobiográfico, como é Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, os dois se conectam ao trazerem à literatura histórias que apresentam mulheres negras em suas complexidades e integridades, sem desumanizá-las.
“A escrevivência nasce e parte da mulher negra. Traduz a vivência em comum que essas mulheres compartilham – tanto as opressões de raça e gênero quanto as superações e resistências cotidianas que produzem. A gente cria uma resistência para se manter vivo e manter a memória para os nossos. A escrevivência que vemos em Ponciá Vicêncio também vai se referir a uma memória coletiva do povo africano em diáspora no Brasil. Uma diáspora forçada, sequestrada”, sintetiza Ana Paula.
“E Joca é esse trapo que anda aí. Virou andante. Um dia está aqui, outro dia não se sabe dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei. Até em Curiango a praga acertou de ricochete. Enquanto o pai foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu… Não pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d’água. Tem uma risada de passarinho nascido perto da cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva”
Trecho de Água Funda
“É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos.” É dessa forma que Antonio Candido resume Água Funda no prefácio escrito para a segunda edição da obra, publicada em 2003.
Essa prosa fiada, que dá ao leitor a sensação de estar escutando as personagens, é um dos aspectos mais aclamados do romance de Ruth Guimarães (1920-2014). Nascida e criada em Cachoeira Paulista, cidade localizada quase na divisa com Minas Gerais, Ruth traz a Água Funda um retrato do Brasil caipira sem cair em estereótipos ou idealizações. Usando seu lugar de fala como mulher negra e caipira, a autora se inspira na sua própria vida na roça.
Com linguagem marcada pela oralidade, o romance é repleto de descrições. “A gente vê o caipira, aquele que é ligado à terra, as descrições da natureza, a gente vê bem o sentimento dela [da Ruth] de amar esse lugar. E aí tu vai ver na biografia dela que ela não sai desse lugar, ela fica ali. Esse é o desejo dela: ver aquele céu, ver aqueles pássaros, ver aquela flora… E a gente chega até a sentir o cheiro do ar puro”, destaca a doutoranda em Letras pela UFRGS Ana dos Santos, que pesquisa literatura negra de autoria feminina.
A obra é escrita em um formato de conversa de um/a narrador/a com “um moço”. A doutoranda do departamento de Estudos Literários da USP Cecília Furquim defende que, na verdade, o/a narrador/a é uma mulher. Ela explica que, ao longo do romance há diversas pistas que mostram que esse/a narrador/a é alguém da comunidade e que, ao mesmo tempo que tem familiaridade com a linguagem caipira, também possui educação formal. “A gente poderia dizer que a narradora é um alterego da Ruth, porque ela tinha uma escolaridade, inclusive, excepcional para a época, para o fato de ser uma mulher negra”, aponta.
Ana concorda que o/a narrador/a é alguém pertencente à comunidade, mas tem dúvidas quanto ao gênero. “Pode ser uma narradora, mas o que me incomoda é que o posicionamento desse narrador é muito vago. Ele só diz ‘na escravidão era assim’. E eu não sei se a Ruth respeitaria tanto assim o poder, porque, para mim, ela era muito ousada para a época”, analisa. Afinal, Ruth era uma mulher negra, caipira e jovem – Água Funda foi publicado em 1946, quando ela tinha 26 anos.
Seja com narrador ou narradora, a composição do romance – fragmentada, uma espécie de “colcha de retalhos” – é a grande originalidade da obra. Cecília aponta que, como isso não era comum na época, esse aspecto não foi bem recebido pela crítica naquele momento. “A gente pode dizer que essa composição da obra – que na época do lançamento foi alvo de críticas – tem a ver com o fato de a Ruth ter juntado ‘causos’ que ela escutava, vivenciava”, diz.
Em um depoimento concedido ao Museu Afro Brasil em 2007, Ruth comentou que essa composição se inspirava no povo brasileiro.
“Assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali”
Ruth Guimarães
A obra acontece em dois momentos temporais: a primeira parte do livro se passa cerca de 15 anos antes da abolição da escravatura, na fazenda Olhos D’Água; a segunda parte, entre os anos 1930 e 1940, na cidade de Pedra Branca. Apesar desse salto no tempo, o que se percebe no romance é que aspectos como a exploração do caipira e a desigualdade permanecem intocados, fazendo uma espécie de desvelamento da estrutura colonial que permaneceu no Brasil.
“Mudou a fase, mudou o século, mudou de Monarquia para República, mas na água funda do Brasil se manteve a estrutura colonial”
Ana dos Santos
Nesse sentido, em um dos trechos do livro é inevitável lembrar de notícias recentes sobre casos de trabalho análogo à escravidão na Serra e na Fronteira Oeste gaúchas. Em Água Funda, um forasteiro sem nome chega a Pedra Branca para recrutar homens para trabalhar na abertura de estradas no sertão, prometendo o pagamento de trinta mil réis (um valor alto) por dia.
“– E livre de despesas. Quer dizer, não é bem livre de despesas. É assim: todos os gastos correm por conta dos engenheiros. É uma companhia grande. Depois o empregado paga aos poucos. Quando a gente entra, assina um contrato…
– Assim é bom. Mas a Companhia tem de tudo?
– Tem. Armazém, loja e farmácia, além de alojamento para o pessoal.
– Tudo isso e os trinta por dia correndo…”
Um dos personagens, Mané Pão Doce, resolve aceitar a oferta. Volta, tempos depois, contando que precisou fugir do lugar, porque a situação era diferente do prometido: além de trabalhar pesado, sem descanso e ouvindo ofensas do patrão, os empregados eram pagos em vales, aceitos apenas no armazém da Companhia – que cobrava muito caro pelos produtos. Ao pedir as contas, o empregado descobre que deve ao patrão pela viagem, pela esteira em que dormia, pelo alojamento, pela lavagem de roupa, além das compras no armazém – e só pode ir embora quando saldar a dívida. “Contando com tudo, ia meu ordenado e eu ainda ficava devendo uns dois meses de serviço”, reflete a personagem.
O/a narrador/a de Água Funda credita os tristes destinos dos personagens a uma praga lançada pela escravizada Joana. Para Ana, a praga é uma metáfora para os 300 anos de escravidão. “Esse romance está fazendo uma crítica à escravidão e ao pós-abolição, que manteve as coisas como estão e, se elas estão dando errado, é porque não se resolveu isso lá atrás. É o fantasma da escravidão”, conclui a pesquisadora.
entrevistas copiadas do site Jornal da Universidade